sábado, 10 de dezembro de 2011

REQUALIFICAÇÃO DA CAPELA DO ESPIRITO SANTO DA IGREJA MATRIZ DE SÃO JULIÃO


O denominado retábulo e altar do Pentecostes ou do Espírito Santo é uma peça escultórica de relevante valor patrimonial. Nos anos 30 do séc. passado foi transferido do mos
teiro cisterciense de Seiça e instalado no topo da capela do lado do Evangelho da igreja Matriz figueirense. Trabalhado em pedra de Ançã, apresenta caraterísticas de estilo renascentista, o que o torna
cronologicamente contemporâneo das valiosas esculturas de São Julião e de Sta. Luzia. Ao longo dos tempos sofreu vicissitudes que vão desde o simples abandono, a partir da extinção das Ordens Religiosas após a vitória liberal em todo o país, em 1834, atingindo um estado de degradação tal nos finais do séc. XIX que o governo da nação declarou desresponsabilizar-se pela sua conservação. Porém, e finalmente, surgiu uma luz no fundo do túnel ! ... As afinidades estilísticas entre as imagens e o conjunto escultórico do retábulo colocam-nos num contexto que leva ao reconhecimento e admiração por esse período da história da arte renascentista, na região do Baixo Mondego. A sua entrega à custódia do Museu Santos Rocha viabilizou o seu restauro, pese embora a adulteração parcial a que a peça foi sujeita, em conformidade com as opções estéticorreligiosas dominantes na época. A sua instalação definitiva na Matriz ocorreu nos anos 30. Todavia a temática escultórica do retábulo foi conservada.
Segundo um texto a que tivemos acesso, as alterações na peça aconteceram “no remate superior. Os primitivos nichos laterais com santos foram substituídos pelas aletas de ligação entre as pilastras que enquadram o Padre Eterno e as extremas encimadas por urnas de perfil moderno.
A manipulação mais ousada consistiu, no entanto, na substituição das primitivas esculturas laterais em alto relevo de S. Bernardo e de Sto. António pelas de Sto. Amaro e S. Pedro, este colocado à direita no plano frontal do observador (...). Assim, o retábulo que se apresenta hoje na capela do Espírito Santo remete para um outro universo físico e concetual em total rutura com o configurado na capela do Pentecostes do mosteiro cisterciense”(1)
Porém, um restauro que o reponha numa situação análoga ao seu originário contexto colidiria com as novas conceções que militam em prol de uma dinâmica integradora da marca do tempo cuja ação sobre os objetos conduz a um novo diálogo, a uma nova forma de interpretação discursiva.
Nesta ótica, a leitura das esculturas da capela, segundo a nova estratégia do espaço que possibilita a ampliação do olhar, favorece mais possibilidades de leitura. Com efeito, por força da instalação das imagens de São Julião e de Sta. Luzia, tornou-se imperiosa a contração quer para o equilíbrio global do espaço da capela, quer para a valorização do retábulo. Por outro lado, a deslocação da iluminação para uma posição lateral e rasante favorece uma perceção positiva do painel escultórico, situando-nos no contexto renascentista, como acontece em alguns altares de João de Ruão, por ex., na capela de Varziela. Por conseguinte, a luz rasante através da fresta da caixa que alberga as duas esculturas potencia a qualidade narrativa das temáticas escultóricas do retábulo, bem como destaca as suas diferentes caraterísticas volumétricas.
A solução encontrada para a colocação das imagens de São Julião e de Sta. Luzia permitirá, pois, um outro nível de leitura dos dois “momentos escultóricos”.
  A capela do Espírito Santo da Matriz continua a manter a função de ligação aos espaços contíguos da secretaria e dos confessionários. Todavia, o projeto implementado assume doravante outras valências: as dimensões de sentido pedagógico e contemplativo. A abóbada de berço remete-nos para a simbólica do mundo celeste, assim como a contração do espaço entre as paredes laterais da capela permite uma visão mais concentrada do retábulo, o que se enquadra numa linha estética do Renascimento. Outrossim o simbolismo da escada, que dá acesso à plataforma das duas esculturas, constitui um suporte imaginativo da ascensão espiritual. Há mosteiros cistercienses com o nome de Scala Dei (Escada de Deus). Os degraus também assumem a forma simbólica de ligação terra e céu. Ou seja, figuram a ponte que possibilita a ascensão espiritual da alma. Assim entendiam os Padres da Igreja e os místicos da idade Média. 
A presença da pia batismal na capela dificultava, obviamente, a leitura iconográfica existente, pelo que se afigurou consensual o seu retorno ao espaço onde esteve até à década de 70, data da realização de obras que levaram à sua instalação na capela do Espírito Santo.
  A realização desta obra fica a dever-se ao empenho entusiástico do Rev. Cónego João Coutinho Veríssimo com a criteriosa intervenção dos arquitetos Miguel Figueira e Pedro Vieira.
João Figueira, Crónica, in "Dever" e "A Voz da Figueira", dez. 2011
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(1) Prof.ª Doutora Maria de Lurdes Craveiro, do Instituto de História da Arte da FLUC

sábado, 26 de novembro de 2011

António Sardinha VS Afonso Duarte e a I República


Afonso Duarte (1884, Ereira de MMV - 1958, Coimbra) ruma a Coimbra em 1898 para cursar o Liceu, em regime de internato no Colégio Mondego. Aqui trava relações de camaradagem e igualmente de confidente literário com António Sardinha (1887, Monforte do Alentejo - 1925, Elvas) que se manterão ao longo do ciclo estudantil. Pouco antes do advento da República, a geração que se seguiu à greve académica de 1907 em Coimbra já se encontra organizada, integrando muitos dos seus membros o grupo dos Esotéricos, nome adotado da obra “Oaristos”(1890) de Eugénio de Castro -, livro onde o autor formula a poética simbolista em termos programáticos. Do grupo contam-se figuras que se destacam no âmbito da cátedra universitária, cultura e política: Cabral de Moncada, Paulo Merea, Veiga Simões, António Sardinha, Virgílio Correia, Sant´Iago Prezado, Alberto Monsaraz, Hipólito Raposo, Ladislau Patrício, Simeão Pinto de Mesquita e outros.
Afonso Duarte, esse, sem ser propriamente um Esotérico, simpatiza com o grupo no qual já fermentava o projeto que adotaria o nome de Integralismo Lusitano. Por outro lado, ambos, A. Duarte e A. Sardinha, não podiam deixar de ser permeáveis ao influxo da atmosfera dominante favorável à República e ao agnosticismo. Com a proclamação da República, a Universidade de Coimbra evolui “de uma instituição marcadamente eclesiástica” para uma “instituição laica”, segundo o Professor Joaquim Ferreira Gomes.
Mas voltemos à greve de 1907 que teve, como pretexto, a reprovação de um candidato republicano às provas magnas de doutoramento em Direito. Esta ocorrência desencadeou forte contestação da parte da massa estudantil coimbrã. A breve trecho os protestos de descontentamento atingiram uma dimensão nacional. A contestação estendeu-se às escolas superiores, secundárias e outras. Para ultrapassar a crise, João Franco, presidente do Conselho e ministro do Reino, cedeu, concedendo o indulto e a comutação das penas aplicadas aos cabecilhas da greve, mas, face à crise governamental, e com a anuência do Rei D. Carlos, ordenou o encerramento das Cortes, pelo que J. Franco passa a assumir poderes ditatoriais (1907).
Porém as reivindicações do corpo discente universitário, visando a reforma dos métodos de ensino, a abolição do foro académico, a eliminação dos procedimentos burocráticos retrógrados, a rotura do conservadorismo ideológico  vigente, não lograram os efeitos desejados. Chega-se ao cúmulo de apodar o lente de “inimigo comum” e mimosear a Academia de “Magna Besta” [apud Vitorino Nemésio, Perspetiva/Perfis...- Revista de Portugal, n.º 8, p. 548, VII/1939]. Dada a complexidade político-social do país que originou a greve e conduziu à ditadura franquista, esta, por sua vez, constitui o ponto de partida para os eventos que hão de abalar a estrutura político-monárquica vigente e marcar profundamente a História de Portugal: o Regicídio (1908) e a implantação da República (5 Outubro 1910). Com a nova ordem estabelecida algumas reivindicações dos académicos grevistas de 1907 são satisfeitas.
Entretanto Alberto Monsaraz, regressado de Paris, trouxera na bagagem a “Ênquete sur la Monarchie” de Charles Maurras (1868 - 1952), cujas ideias se fundam no apoio à Monarquia e adesão à Igreja Católica. Entregue o exemplar a Afonso Duarte, na expetativa da sua adesão à causa monárquica, este, acerca da questão da origem divina do poder régio, responde, com ironia: “Por Graça de Deus só os poetas”[apud V. Nemésio, Vida e Poesia...- Panorama, n.º 5, III Série, Rev. de Arte e Turismo].
Quanto a António Sardinha, inicialmente aderiu ao movimento republicano, pois acreditava que, com a vitória da República, fossem erradicados os erros do Constitucionalismo liberal. Porém, após a vitória, a breve trecho desiludiu-se, abraçando a causa monárquica. Com outros funda o Integralismo Lusitano (1914) que preconiza uma monarquia corporativa e orgânica, e, não obstante a divergência de fundo com A. Duarte, que se manterá fiel ao ideário republicano, Sardinha reconhece ter recebido do seu antigo colega e confidente literário incentivos na perspetiva tradicionalista do seu pensamento e ação. 

João Figueira. Crónica, in "A Voz da Figueira", março 2011

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Efemérides: João de Barros, um Rosto da I República


Como referi na penúltima crónica, João de Barros era possuidor de um importante know how, como pedagogista. Compreende-se, pois, que poucos dias após o triunfo da Revolução de Outubro 1910, ele, um republicano indefetível, dir-se-ia dos quatro costados, fosse sucessivamente convidado a ocupar cargos importantes na governação pública. Logo de imediato, no “Ministério do Interior do Governo Provisório, desempenha o cargo de Diretor Geral da Instrução Pública; em 1913 é nomeado, interinamente, Diretor Geral do ensino primário; ainda no mesmo ano assume funções de Chefe de Repartição do recém-criado Ministério da Instrução Pública; no ano seguinte, Secretário-Geral interino; e em 1919, Diretor Geral do Ensino Primário e Normal, e Secretário Geral” [apud Rómulo de Carvalho, "História do Ensino em Portugal", p. 665. Ed. F. C. Gulbenkian, Lisboa 2001].
Em 1920 João de Barros assume uma postura de crítica construtiva sobre o statu quo vigente no ensino: [...] “tem-se por vezes a impressão de que a República surgiu cedo de mais“. [...]. [...] “em Portugal apenas se criaram os meios de alargar e multiplicar um ensino antigo. O ensino primário não tem ligação com o ensino secundário; o ensino secundário não se combina com o ensino superior; o ensino profissional não corresponde às exigências económicas das regiões em que se exerce” [apud J. B., “O Problema Educativo Português”, Lisboa, 1920, pp. 5, 16-18]. Entrementes, “em 1924 João de Barros é nomeado Ministro dos Negócios Estrangeiros; e em 1925, Diretor Geral do Ensino Secundário. Apesar da viragem política de 28 de Maio 1926, início do período da Ditadura Nacional, João de Barros continua em funções. A suspensão ocorre em 1927 mas o abandono definitivo do cargo acontece em 1928” [apud Rómulo de Carvalho, idem, ibidem].
Face à inexistência de uma visão global do sistema de ensino, o ministro da Instrução Pública, João José da Conceição Camoesas, em 1923, procurou suprir a falta de ordem e de coerência da profusão de leis, portarias e decretos anteriormente promulgados, alterados ou suspensos. A elaboração do projeto contou com a colaboração de personalidades de reconhecido mérito pela sua competência, como é o caso de António Sérgio, de Faria de Vasconcelos, e outros. Porém, passados alguns meses da tomada de posse, o governo de Camoesas caiu e o documento denominado “Estatuto da Educação Nacional” passou a figurar como mais um projeto de interesse histórico.
Com efeito, a substituição tão rápida de governos não permitia uma governação nem sequer razoavelmente consistente. Assinale-se que, nos últimos treze anos da República, o país teve quarenta ministros da Instrução, fora os que ocuparam o cargo interinamente. Perante esta situação que não favorece uma governação minimamente profícua, João de Barros tem palavras acertadas de grande lucidez de crítica construtiva quando escreve: “Para poder haver ressurgimento patriótico - ´Um Homem Novo´ -, são necessárias as condições seguintes: ultrapassar o problema do analfabetismo; a efetivação de um ensino nacionalizador (o culto da bandeira; o hino da Pátria; o culto da árvore; o culto dos heróis [...]”. Na verdade, João de Barros jamais desiste de assumir um postura crítica contundente mas realista: “as reformas sucedem-se [...] porque a falta de coesão e ideal comum dessas reformas não permite senão que elas se contradigam [...] e prejudiquem a sua realização. É o caos. É a desordem nas inteligências, pior que todas as outras desordens. É a indisciplina do ensino, juntando-se à indisciplina que há muito se nota na família e na sociedade” [in “O Problema Educativo Português”, revista Atlântida, vol.XI, 1919]. João de Barros, um entre outros ilustres figueirenses, é um rosto da I República, figura de reconhecido mérito no panorama pedagógico português. Pugnou pelo reforço das relações luso-brasileiras pelo que fundou a revista Atlântida (1915-1920) de cariz artístico, literário e social, dirigida pelo próprio e João do Rio (pseudónimo de Paulo
Barreto), respetivamente em Portugal e no Brasil. Possui várias condecorações nacionais e estrangeiras.
Na literatura e obra pedagógica deixou a marca de um otimismo fundado na crença iluminista do progresso, na ótica transfinita da perfetibilidade do ser humano, cujo ideário assume a mais alta expressão no poema dramático Anteu (1912). No âmbito das suas preocupações pedagógicas fez adaptações de obras clássicas para a infância, a juventude e o povo, tais como: “Os Lusíadas”, “Ilíada e Odisseia”. A sua actividade intelectual estende-se do jornalismo à publicação de livros de prosa e poesia. Na Figueira da Foz, a Escola EB2/3 Dr. João de Barros, que adotou o seu nome para patrono, honra e perpetua a sua memória. 

 João Figueira, Crónica, in “A Voz da Figueira”, Dezembro de 1910

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

No fluir do tempo: João de Barros, uma Figura Incontrolável da I República


No centenário da proclamação da República e aos cinquenta anos da morte de João de Barros propus-me evocar a memória deste insigne figueirense, republicano convicto que desempenhou cargos superiores no setor público, nomeadamente no domínio da educação, funções em que se destacou de forma relevante em prol de uma educação nova. Por outro lado, como pedagogista, os livros que publicou sobre a matéria tonaram-no uma referência indispensável ao conhecimento de uma época complexa, de grandes desafios para o país. Da sua variada obra debruço-me sobre esta última dimensão.
Em 1909 Barros desempenha no Porto as funções de secretário da comissão auxiliar das Escolas Móveis. Assinale-se que se deve a Casimiro Freire, afeto ao ideário republicano, a criação de “As Missões” de alfabetização no país e a fundação em 1882 da Associação de Escolas Móveis pelo método de João de Deus. Por seu turno, João de Barros em “A República e a Escola” revela que, aquando da sua passagem pela Direção-Geral de Instrução Primária em 1910, fez esforços para concretizar essa ideia de alfabetização do povo mas que se gorou por falta de acolhimento do Ministro. Assinale-se que a “chaga” do analfabetismo andava à volta de três quartos da população do país.
Todavia, de início os reformadores da República apostaram na modernização do ensino primário, na sequência do ensino infantil oficial (que embora legislado não chegou a passar do papel), com o intuito de criar “um homem novo”, bem como na reforma do ensino superior não sem o propósito de afrontar a hegemonia da Universidade coimbrã que sofrerá importantes remodelações. Em contrapartida, o ensino secundário não mereceu o mesmo cuidado que o dos níveis primário e superior. Para João de Barros “a reforma das estruturas escolares não deveria significar, automaticamente, a subordinação da atividade educativa aos objetivos estreitos da política partidária” [apud Rogério Fernandes, João de Barros: Educador Republicano, Livros Horizonte, p. 22].
Consumada a vitória de outubro 1910, Barros é convidado a elaborar um projeto de Reforma da Instrução Primária de parceria com João de Deus Ramos, amigo desde o tempo da Universidade. Porém, depois de terminado e publicado o documento no princípio de 1911, concluíram os seus autores que muito pouco tinha que ver com o projeto por si elaborado. Não passava de uma “cópia grosseira”. (Re)começaram então as desinteligências político-educativas que haviam de ensombrar a obra legislativa da República nesta área, mau grado alguns inegáveis contributos positivos na esfera educacional, ao longo dos dezasseis anos de democracia parlamentar.
Com efeito, já em 1911 João de Barros, na publicação “A Nacionalização do Ensino”, preconiza uma nova orientação educativa, aliás seguindo o pensar de Almeida Garrett (1779 - 1854): “Nenhuma educação pode ser boa se não for eminentemente nacional” [in “Da Educação”, Introdução]. Assim, a instrução e a educação para serem genuínas devem ter uma marca nacionalizadora ou patriótica e em conformidade com a ideologia laica. Entendia que republicanizar o país e a escola era enformar a nossa pedagogia de princípios educativos opostos àqueles que adotava a escola tradicional. Daí enfatizar o ensino neutro e/ou laico em matéria confessional e de igual modo um arreigado amor à Pátria e à República. Neste sentido, “o conceito de educação de João de Barros aproximava-se das preocupações dos nossos pedagogistas ligados ao programa filosófico-social da Geração de 70” (Antero de Quental, Eça de Queiroz, Oliveira Martins e outros” [apud Rogério Fernandes, idem, p.19]).
Desde dezembro 1917 ao mesmo mês do ano seguinte, vigorou no país o regime ditatorial de Sidónio Pais cujas reformas obviamente não tiveram futuro, após o seu assassinato. No entanto foi previsto por Regulamento a criação de associações escolares dirigidas por alunos onde se cante o hino nacional, se pratique o culto da bandeira, se comemorem datas históricas nacionais e se exaltem os feitos de portugueses notáveis. Esta orientação consagrada na legislação corresponde, ainda que limitada, ao pensamento de Barros na obra acima citada. Nessa publicação dá-nos o programa do que entende que deve ser feito: “Dê-se às gerações modernas, com a preparação geral que lhes é indispensável, a consciência da terra em que vivem, o sentimento do solo que pisam, do ambiente em que respiram, das tradições que representam, das possibilidades que temos nos nossos cérebros e nos nossos músculos de melhorar e de progredir, como indivíduos e como sociedade” [apud João de Barros, A Nacionalização do Ensino, p. 15]. 

João Figueira, Crónica, in “A Voz da Figueira”, Dezembro de 2010

terça-feira, 18 de outubro de 2011

João de Barros, um Vulto Marcante da I República


É justo que se evoque a memória de João de Barros (Figueira da Foz, 1881/04/02 - Lisboa,1960/10/25), no 50.º aniversário do seu falecimento e 100.º da proclamação da República. Alcançou notoriedade pública como pensador da educação republicana, escritor e defensor entusiástico da aproximação luso-brasileira. Nascido em ambiente familiar e social estimulante, concluiu a instrução primária e secundária na terra natal. Decide-se pelo ensino superior. O jovem Barros ruma a Lisboa, matricula-se no curso de preparatórios da Escola Politécnica para ingresso na Escola Naval, facto que não chegou a consumar-se por sofrer de miopia. Então, dá uma volta à vida matriculando-se na Faculdade de Direito de Coimbra, onde conclui o bacharelato em 1904. No ano seguinte é nomeado professor de Português e Francês do Liceu de Coimbra; em 1906 no do Carmo em Lisboa; e no ano imediato no Liceu de Alexandre Herculano no Porto, até o advento da República.
Porém, em 1907, então na ditadura de João Franco, por decisão régia, é nomeado bolseiro a fim de observar e estudar as inovações introduzidas em várias instituições escolares europeias. Assim, Barros visitou durante cerca de um ano vários estabelecimentos de ensino em alguns países da Europa: Espanha, França, Inglaterra e Bélgica. A partir de determinado momento da visita contou com a colaboração de João de Deus Ramos, fundador dos jardins-escolas de seu nome e antigo colega da Universidade, filho do poeta de “Campo de Flores” e pedagogo, autor da Cartilha Maternal (1876). Do que viu e ouviu, como bolseiro ao serviço da magna causa da educação, deu conta das suas reflexões na obra “ A Escola e o Futuro — Notas sobre Educação” (1908).
Com efeito, da passagem pela capital espanhola relata a prática da coeducação, numa escola privada, experiência que considera “interessantíssima” e outras inovações, tais como, as turmas pequenas, a ausência de manuais, a supressão de exames e o papel do professor como estimulador da iniciativa dos alunos.
Em França, no concernente ao ensino secundário (liceus e colégios), exceto a existência de turmas pequenas e de bom material de ensino, confessa “não encontrar novidade” que se aplique a Portugal. Tal não acontece na “ École des Roches” localizada na Normandia, fundada pelo pedagogo Edmond Demolins sob a aura da Educação Nova. Barros enfatiza: o horário letivo concentrado apenas na parte da manhã, a importância concedida aos trabalhos manuais, os jogos, a aplicação dos modernos métodos de ensino, o “respeito pela criança”, na linha da “formação de homens”.
Da ida à Bélgica dá conta de uma entrevista com o educador belga J.-F. Eslander que defende o ponto de vista da importância, na aprendizagem, da “substituição da ordem científica pela ordem didática-pedagógica, isto é, pelo método que o aluno seguirá naturalmente, passando do facto observado, da experiência feita, para a teoria”.
Na Inglaterra contacta escolas do ensino secundário público e particular, jardins de infância e escolas primárias. Sobre os liceus anota alguns aspetos que, diz, podem ser úteis a Portugal: “a qualidade dos edifícios, turmas pequenas, boa formação profissional dos professores e aprendizagem a mais prática e experimental possível”. Aspetos desfavoráveis: “programas decalcados nos alemães e certa desvalorização da educação física”. Quanto ao ensino particular, a nota mais saliente vai para o colégio Bedales (Petersfield), fundado em 1893 por J. H. Badley para quem a educação da pessoa é entendida como um todo: “a mão, cabeça e coração”, q. d., uma educação integral. Porém, para que este objetivo seja alcançado, considera João de Barros, a arte de educar postula uma formação de professores que tenha em conta “referências à ciência e à arte”.
A comparação entre Portugal e os países visitados permite-lhe avançar as seguintes propostas para o ensino no nosso país: “construção de escolas mais adequadas e bem equipadas; redução de alunos por turma; aplicação do método direto na aprendizagem das línguas vivas; valorização da ginástica; e melhoria da situação moral e material dos professores”. (Alguma informação fornecida provem de “Notas sobre Educação” disponibilizada na Net por Joaquim Pintassilgo, “Os Relatórios de Bolseiros Portugueses...”). 

Joao Figueira, Crónica, in “A Voz da Figueira”, Novembro de 2010.

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Joaquim de Montezuma, Joaquim de Carvalho e Afonso Duarte - Amigos e Referências Nacionais


    Joaquim de Montezuma nasceu na freguesia de Almedina, Coimbra. Optou pelo curso de Direito, como já havia feito o seu pai, o Professor Doutor Joaquim de Carvalho, insigne figueirense que teve Cátedra na Faculdade de Letras da vetusta e nobre Universidade, onde também se doutorou em Filosofia, notabilizando-se como incansável investigador, filósofo, ensaísta criativo e grande divulgador da vertente humanista da cultura portuguesa.

Coube ao filho continuar esta faceta, interiorizando o labor sério e inestimável do seu ilustre progenitor. Porém, entre os dois havia (há sempre!) as naturais diferenças: há quem diga que o filho preferia os poetas e a poesia aos filósofos; seu pai, os filósofos e a filosofia, se bem que Joaquim de Montezuma e seu pai convergissem no estudo e veneração pelo filósofo Bento de Espinosa (séc.XVII). Concluída a licenciatura em Direito, o Dr. Joaquim de Montezuma começa a destacar-se nas lides literárias aquando da Homenagem da Academia Coimbrã ao poeta Teixeira de Pascoaes (1951). Passou uns tempos em Angola e Moçambique, onde a par das tarefas da área do Direito não descurou a actividade cultural, inclusive a comunicação radiofónica. Seguiram-se depois novas motivações. Como diz o povo, “filho de peixe sabe nadar”, ei-lo então a levantar ferro e desfraldar velas em direção a outras paragens mais desafiantes.
Por 1953, o Professor Joaquim de Carvalho viajou por terras brasileiras a convite de várias universidades, onde fez conferências, lecionou cursos e fez muitos amigos. Tudo isto naturalmente reverteu a favor do filho cujos caminhos foram, assim, previamente alisados.
O estreitamento das relações luso-brasileiras teve no Dr. Joaquim de Montezuma um notável paladino. Para a União Brasileira de Escritores, ele “representou intensa e continuamente o verdadeiro papel de um embaixador cultural que, sem alarde, aproximou e divulgou a cultura luso-brasileira com a força da paixão e desprendimento que falta aos acordos oficiais”, in Net. Todavia, esta ação cultural de cavaleiro andante não se confinou ao universo do país irmão. A sua conceção universalista da cultura levou-o também aos países hispano-americanos. Dos géneros literários a que se dedicou, destacam-se a literatura, a crítica literária, o ensaio, a filosofia, a sociologia, a história das ideias... Autor de alguns livros, contam-se por centenas os escritos publicados em revistas e jornais estrangeiros e portugueses. A Biblioteca Municipal da Figueira da Foz conserva um importante acervo do labor intelectual do Dr. Joaquim de Montezuma de Carvalho. Foi membro de diversas associações culturais e galardoado por variadas instituições e múltiplas personalidades do mundo da cultura.
Sabe-se que tanto o Professor Joaquim de Carvalho, como o filho, mantiveram ao longo dos anos indefetível apreço e viva amizade intelectual por Afonso Duarte, o Poeta ereirense falecido em 5 de Março de 1958, cuja comemoração ocorreu ao longo desse ano. Amizade exemplar que levou o Docente universitário a exprimir-se desta forma: “... honro-me de ter sido do meu tempo e de pertencer a uma terra onde chega o salgado da minha, o único Poeta que eu sinto, dentre os que hoje aparecem e comparecem, e aquele cujos pensamentos estão mais próximos dos meus e dos meus juízos sobre certos homens e circunstâncias do mundo sob que jazemos” [apud, José Pires de Azevedo, Lembrança de Afonso Duarte. Cadernos Municipais - 5. Fig. da Foz - 1981].
Por seu turno, Montezuma de Carvalho também apreciava estabelecer relações de amizade com as pessoas, trocar ideias, comunicar informações e saberes. Tendo tido conhecimento, por meados da década de cinquenta, que uma ilustre Professora de Literatura Portuguesa da Universidade do Rio de Janeiro, D. Cleonice Berardinelli, planeava estudar a poesia de Afonso Duarte com os seus alunos, não se faz rogado. Apesar de na altura se encontrar em Angola, promove ele próprio os contactos entre as duas partes e chama a si a divulgação da informação na imprensa regional e nacional portuguesas. Joaquim de Montezuma foi, assim, elo de ligação entre Afonso Duarte e D. Cleo, como é conhecida pelos os seus patrícios.
Nada melhor do que as suas palavras para sublinhar o sentimento de luto e admiração na hora da despedida do Poeta amigo: “Fui à Ereira. O sol continuava a festejar o Poeta. Na casa dos seus pais, num pequeno quarto rodeado de lágrimas, abria-se a flor estática e suavíssima do seu perfil morto”[O Primeiro de Janeiro,12/03/1958]. Palavras que não desmentem a sensibilidade poética e a nobre amizade do seu autor. Talvez, por isso, os dois amigos de velha data tenham “inconscientemente” marcado encontro “com o anjo de asas brancas da morte” para aquela semana de Março, quase no mesmo dia e a escassas horas de diferença e não sei quantos minutos, pese embora a roda do tempo tenha marcado com assinalável aproximação os cinquenta anos decorridos. 

João Figueira, Crónica, in “A Voz da Figueira”, Junho de 2008.

Joaquim de Carvalho - Ferrière e a Educação Nova




Cinquenta anos depois

Completaram-se as iniciativas de homenagem ao ilustre figueirense Prof. Doutor Joaquim de Carvalho, cujo programa oficial contemplou diversas vertentes culturais centradas na vida e obra do notabilíssimo estudioso de grandes vultos nacionais e estrangeiros, bem como a sua relevante e distinta ação na Cátedra universitária, o que o tornou um sólido e abalizado divulgador, nomeadamente da cultura portuguesa. A Escola Secundária e a Associação que ostentam o seu nome, o Casino e a Câmara Municipal da Figueira da Foz, através da sua Biblioteca Pública, bem como o considerável número de intelectuais de diversas áreas do mundo da cultura que marcaram presença e/ou intervieram nas duas Tertúlias, dão bem a ideia de que Joaquim de Carvalho, a esta distância de cinco décadas em que muita coisa mudou, continua a ser uma figura prestigiada e uma referência incontornável. E isso honra-me, pois ainda o conheci vivo e fui seu aluno.
Passo a abordar os temas de educação e de pedagogia tão caros ao carismático Docente da FLUC, socorrendo-me de um texto seu pouco conhecido, julgo eu. O escrito destina-se a um ato de circunstância: a passagem por Coimbra, em Nov. de 1930 , do Prof. Adolfo Ferrière, figura grada da chamada Educação Nova. Coube ao Mestre universitário fazer a Apresentação do ilustre visitante. Recorde-se que a escolaridade secundária do jovem Carvalho decorreu no Colégio Liceu Figueirense (1902-11), um dos poucos estabelecimento de ensino do país concebido sob a inspiração das ideias da Escola Nova, já com considerável difusão na Europa. O ilustre Pensador figueirense iniciou a sua brilhante intervenção, valorizando a escola em geral e o seu papel na educação infantil, e fá-lo nos termos seguintes:
“Nem a política, nem a economia (...) salvarão a nossa civilização conturbada e dolorida; só a escola o conseguirá, atuando na infância e pela infância”. E precisa o seu pensamento:
“Esta conceção considerar-se-á velha, mas pelo espírito do sr. Ferrière como que conquista um espírito novo, impondo uma verdadeira revolução semelhante à de Copérnico na posição da Escola. Ela coage-nos a ver na Escola não a continuadora do que é, mas o início do que deve ser”.
Para o douto Professor da Universidade conimbricense a vida é uma tarefa a realizar com um sentido que supõe uma conceção do homem, em ordem a um fim:
“Eu creio (...) que a Vida, na multiplicidade admirável dos seus aspetos, possui um sentido especificamente humano. A vida para o homem supõe necessariamente uma arte de viver, quero dizer, a ordenação hierárquica de fins e uma escolha de meios para a satisfação desses fins. O que é a atividade educadora senão a instauração das manifestações espirituais segundo uma ideia diretiva central, a subordinação do caos aos instintos e das tendências à ordem e ao equilíbrio? Esta ideia é o fim supremo da educação, porém a sua determinação constitui um tema de magnos dissídios. Como é óbvio, esta ideia é uma ideia essencialmente filosófica”. E o ilustrado pedagogista continua:
“É que a pedagogia para além da técnica, que é de fundamentação científica, e na qual cada vez mais verificamos uma marcha para a aceitação unânime, isto é, para a uniformidade dos métodos, tem um conteúdo filosófico, pois supõe necessariamente uma conceção do homem e da sua essência metafísica, assim como dos fins supremos da cultura”.
Sobre o objetivo da educação e aos valores a ela inerentes, assevera o sábio educador:
“Eu penso que o alvo da educação é, no estádio atual da humanidade, a autonomia da pessoa e a liberdade moral, como foi em épocas volvidas, a virtude cívica entre os romanos, e o reino de Deus, na cristandade medieval”. E conclui o nosso sage:
“Esta autonomia e liberdade pessoal que conduz a situar o centro da atividade educacional na vontade, que não apenas na inteligência e no sentimento, não excluem os valores religiosos, na medida em que se consideram como ascensão do espírito na escala qualitativa dos valores, surgem precisamente como valores últimos e supremos, sob a condição, claro, que a noção de Deus não seja uma noção feita, mas que se faz, que evolui, como desenvolvimento do espírito, ou do que o sr. Ferrière chama l’ élan vital spirituel.”
Finalmente, o consagrado Historiador da Cultura e da Educação remata judiciosamente a sua notável Apresentação:
“Pela sua obra científica, o sr. Prof. Ferrière é dos pedagogos contemporâneos um dos que mais ardorosamente concorreu para a aceitação desta grande verdade dos nossos tempos: a existência de um saber de conteúdo pedagógico”. [Apresentação do Dr. Ferrière na sua conferência em Coimbra,1930, in Dicionário de Educadores Portugueses. Direção de António Nóvoa. Edições Asa, 2003].
E, ao jeito de conclusão, evoco o testemunho de outro grande nome de Professor e Educador, o Poeta ereirense, Afonso Duarte (1884-1958), que a propósito de Ferrière escreveu:
“Globalizador de todas as melhores experiências das Escolas Novas - edificando a Escola Ativa; filósofo do progresso espiritual - libertou-nos dos mitos da velha pedagogia; poeta para quem o homem é o templo do Espírito divino - eis Adolfo Ferrière, o animador do movimento internacional de educação”. [in Seara Nova, 1930. Publ. in “A Voz da Figueira”, Nov.2008].
  
     João Figueira

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Joaquim de Carvalho e o Veredito da História



Em 1989/10/27, com a presença do Senhor Presidente da República, Dr. Mário Soares, a Figueira da Foz homenageou um dos seus filhos mais ilustres, o Professor Doutor Joaquim de carvalho. Para além das intervenções evocativas da sua memória no Salão Nobre dos Paços do Concelho e da mostra bio-bibliográfica na Escola Secundária que adotou o seu nome como Patrono, os atos de mais forte e profundo significado foram porventura a concessão de título honorífico, a Grã Cruz da Ordem de Santiago da Espada, e a inauguração da estátua do eminente Mestre da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.
Com efeito, a Figueira da Foz acabava de saldar uma dívida antiga ao notável figueirense, erigindo-lhe uma estátua — obra de outra figura de relevo figueirense, Gustavo de Bastos, Professor / Mestre de Escultura da ESBAP —, a qual passou a embelezar a rotunda 31 de janeiro, não longe dos limites da apreciada Quinta do Pinhal, de Joaquim de Carvalho. Doravante, os figueirenses passam a defrontar-se com o símbolo de um dos maiores pensadores e estudiosas do mundo da cultura do séc. XX. Homem simples, de origens humildes, assim viveu e morreu, não obstante o mérito e prestígio alcançados aquém e além fronteiras. A sua estátua é bem a expressão dessa nobreza interior que faz a grandeza dos homens de escol. Joaquim de Carvalho não nos aparece vestido com as vestes talares doutorais da cátedra universitária —, ele que foi justamente uma das figuras de relevo mais destacadas.
Vítima de alguma injustiça e incompreensão de alguns enquanto peregrinou nesta vida, soube sempre encontrar o justo equilíbrio e a sabedoria bastante no meio de desafios e adversidades de vária ordem. O estudo, a reflexão, a contemplação filosófica a que se devotou denodadamente , transfiguraram a sua humanidade, tornando-o compreensivo, tolerante, justo e estruturalmente livre. Joaquim de Carvalho é uma glória da Figueira, uma personalidade de dimensão nacional e um cidadão da Europa e do mundo. Está de parabéns a comissão promotora desta jornada cultural. Pensando em 92, ano do Centenário de Joaquim de Carvalho, um dos elementos da referida comissão segredou-nos que perante tudo isto não sei o que poderemos fazer mais!... Tinha razão... mas certamente irão surgir ideias. E terminamos com as palavras finais de despedida de um dos seus filhos presente no funeral do pai muito amado, volvidos trinta e um anos: “Não tinhas medo à História. E a História há de julgar-te um dia, como um símbolo”.
Por nossa parte, pensamos que já começou o veredito da História. 

João Figueira, Crónica, in “O Dever”, Figueira da Foz, 1989/11/16.

terça-feira, 5 de julho de 2011

"O Sentimento de Deus em J. de Carvalho"


Por iniciativa da Câmara Municipal da Figueira da Foz, realizou-se no passado dia 10, no Salão Nobre dos Paços do Concelho, uma palestra subordinada ao tema em epígrafe. O conferente convidado foi o Dr. Joaquim Montezuma de Carvalho, filho do ilustre figueirense que, se fosse vivo, faria anos neste dia —, o Professor Doutor Joaquim de Carvalho.
O presidente da Câmara, Eng. Aguiar de Carvalho, que se encontrava ladeado pelo vereador Dr. Armando Garrido, começou por referir-se a Joaquim de Carvalho... “grande vulto da Cultura Portuguesa”, e agradeceu a disponibilidade do orador, acedendo ao convite. Por seu lado, o Dr. Joaquim Montezuma, no uso da palavra, agradeceu o convite e a presença do público. Passou de seguida ao desenvolvimento do tema, citando o filósofo holandês Bento de Espinosa (1632-1677), de origem portuguesa, e o pensador francês Jacques Chevalier que, aquando da morte de Joaquim de Carvalho, afirmou tratar-se de “um católico sem o saber”. O orador mostrou a inconsistência desta interpretação, pois em Joaquim de Carvalho “o sentimento de Deus não provem da fé mas apenas da razão”. E de uma forma mais explícita: “Escrevendo sobre Espinosa, escreveu sobre si próprio”. Para Joaquim de Carvalho, “Deus é a cúpula do edifício mental; é a própria racionalidade”. Joaquim de Carvalho aproximou-se, assim, do “panteísmo da razão” do filósofo holandês, e por isso se distanciou da mundividência cristã/católica.
O palestrante referiu-se também ao “conceito de liberdade” como condição de criatividade, dizendo que Joaquim de Carvalho era “um amante da liberdade para si e para os outros”. Sobre as ideias políticas do pai, o ilustre orador esclareceu que “o pensamento de Joaquim de Carvalho não é de esquerda nem de direita, porque a razão é apartidária, na aceção de Joaquim de Carvalho”. Após palavras de profunda admiração pelo modo de estar na vida do seu progenitor, concluiu com uma referência a Fernando Pessoa: “Minha Pátria é a Língua Portuguesa”. De Joaquim de Carvalho pode também afirmar-se com propriedade: “Minha Pátria é a Cultura Portuguesa”.
Recorde-se que Joaquim de Carvalho nasceu em 10 de junho de 1892, na Travessa da Rua do Mato, São Julião, Figueira da Foz. Nós, que tivemos o privilégio de tê-lo com Mestre na Faculdade de Letras na Universidade de Coimbra, no ano letivo de 1957/58, conservamos ainda na memória a grata lembrança de um homem culto, de uma grande lhaneza no trato. Esta evocação da memória do Professor Joaquim de Carvalho, da iniciativa da Cãmara Municipal, significou mais uma Homenagem a um dos filhos mais ilustres e diletos desta formosa Terra da Figueira da Foz, a qual laboriosa e justamente a dignificou, e engrandeceu o País, como historiador da Filosofia e da Cultura, pensador e ensaísta, erudito e professor. 

J. Figueira, Crónica, in “O Dever”, Semanário de Formação e Informação da Figueira da Foz, 85/06/12

domingo, 3 de julho de 2011

"Confluências..."


Mostra de pintura, de Maria Luisete Baptista, na Galeria Magenta da Figueira da Foz, de 06/18 a 2011/07/01.

Estive no ato da inauguração mas prometi regressar num dia mais calmo. Assim aconteceu em 07/01, acompanhado de minha mulher. O título da Exposição sugere que se trata de uma produção artística, na qual confluem múltiplas variáveis que englobam a experiência vivida, a idiossincrasia [nomeadamente o potencial de criatividade artística], as intertextualidades culturais conservadas ao longo da existência da Artista... Maria Luisete ofereceu-se espontaneamente para ser a nossa “cicerone”. Com natural senso pedagógico, começou por uma abordagem à técnica pictórica dominante na Exposição que dá pelo nome de “Encáustica”, cuja origem remonta aos tempos da Antiguidade clássica. Fomos assim introduzidos no maravilhoso universo da Arte.

Ao longo da visita, a Pintora teve o cuidado de, a par e passo, ir dando as “dicas” estritamente necessárias ao processo de purificação sensorial - fase absolutamente necessária à fruição espiritual da Beleza em si. Como por magia, o nosso espírito foi penetrando no mundo poético/onírico e fantasmagórico de formas cromáticas de rara beleza, aparentemente/intencionalmente desordenadas/ambíguas, em ordem a proporcionar o olhar interativo do observador no ato de contemplação da obra artística de Maria Luisete Baptista. Bem haja, Cara Amiga, por aquele tempo forte de consolação espiritual.

terça-feira, 7 de junho de 2011

Política?


Sim, domingo foi dia de eleições! Não é possível fugir à política porque ela emerge da natureza social do ser humano. Foi Aristóteles que o disse e, desde aí, o evoluir da civilização o confirma. Porém, a despeito da afirmação do estagirita, a questão que se coloca é sempre a mesma: Como compreender a complexidade, os equívocos, as ambiguidades e contradições que envolvem o fenómeno político?

o Prof. Doutor Joaquim de Carvalho, ilustre pensador figueirense, comentou a questão nos seguintes termos: (...) "na política, a lógica nem sempre tem os admiráveis resultados que enobrecem o pensamento discursivo, porque os interesses e os sentimentos obedecem frequentemente a outras normas diversas das da ausência da contradição” (...). Sirva-nos de mote a linha de pensamento de Joaquim de Carvalho. O mundo dos interesses, dos sentimentos, e ainda as emoções e paixões — tudo isso se projeta na praxis política dos grupos sociais, com diferentes objetivos e multíplices fins, sem prejuízo da sua dimensão.

Face ao contexto atual de uma crise internacional mais ou menos generalizada, algumas vozes aproveitam o ensejo para manifestar a necessidade de uma regulação apertada que traga moralização, ou melhor, um sentido ético aos agentes dos setores administrativo e económico-financeiro. Por outro lado, é sabido que o império das leis sem qualidade gera insatisfação, desigualdades sociais, promove injustiças. Nesta ótica, parece-me que a praxis política devidamente estruturada e bem conduzida possibilitaria um desempenho mais nobre, mais digno e promotor da solidariedade e da paz social.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Crise e Responsabilidade


Estamos hoje todos imersos num novo mundo cujas mudanças se vão revelando cada vez mais rápidas e profundas. Paradoxalmente de valor positivo e/ou negativo. É assim a crise do nosso tempo entendida como um processo acelerado e ambíguo para melhor ou pior. Porém, este processo não é propriamente novo na História.
Já nos primórdios do séc. XX, o sociólogo Max Weber (1864-1920) confessava que num “mundo desencantado e sem mistério, temos de ser nós capazes de criar o sentido do que acontece no mundo e de ser responsáveis por isso”. Por seu turno, o Poeta ereirense, nos anos imediatos à Segunda Guerra Mundial, vaticinava com algum pessimismo que “Nunca houve tempo tão dúbio: / Cresce a árvore da ciência, / Chove para outro dilúvio”. (Afonso Duarte - Sibila, 1950).
Com efeito, dada a ambiguidade das consequências imprevistas das ações humanas, Max Weber propôs uma “ética de responsabilidade que sirva de prevenção ao devaneio utópico e às ilusórias convicções que, na prática, apenas têm conduzido ao sofrimento e à mutilação do homem”. Dir-se-ia que se abrira a Caixa de Pandora e libertaram-se os males que haviam de afligir a espécie humana dali em diante. Teria então terminado o tempo da “Idade da Inocência, a Idade de Ouro da Humanidade”, embora no fundo da Caixa restasse a Esperança. De alguma forma, este mito da Grécia Antiga pode-nos ajudar a compreender os tempos mais próximos de nós: a modernidade e a pós-modernidade.
Na verdade, a devastação provocada pela explosão das bombas atómicas sobre Hiroshima e Nagasaki (1945) foi um evento profundamente expressivo da irresponsabilidade do homem sobre o Homem, bem como sobre a Natureza ambiente. Daqui para o futuro ficou muito claro o perigo que representa o poder do homem sem controle, nem limites. De igual passo, assistiu-se ao emergir do sentimento de inquietação pelos riscos do progresso científicotécnico generalizado/democratizado e do seu uso descontrolado e imprudente. Todavia, também não se ignora que alguns cientistas, e não só, começaram a tomar paulatinamente consciência da responsabilidade de tal poder sobre a Natureza.
Mas outros perigos entretanto foram surgindo: a manipulação do património genético do ser humano cujas alterações poderão conduzir a consequências futuras muito gravosas. A propósito registe-se que a investigação científica no âmbito das ciências da natureza produz conhecimentos mas, por razões de metodologia, omite o sujeito consciente, livre e responsável. Por outro lado, a tecnociência assumiu cada vez mais o papel de transformadora do mundo, na linha do fazer operativo e do poder. É neste contexto hodierno que a interpelação ética (área da reflexão filosófica...) alcança particular relevância em todos os momentos da investigação e produção tecnocientífica. De facto, quando o homem do saber se interroga sobre as consequências do seu mesmo saber, quando o sábio se interroga como Homem, é a sageza/sabedoria que adquire os seus direitos. É pois do diálogo entre ciência e sageza que poderá resultar a humanização do saber científico.
Como já aludi anteriormente, pelo poder da técnica o homem pode tornar-se inimigo do Homem, pondo em causa os equilíbrios biológicos e cósmicos que constituem os fundamentos vitais da Humanidade. A dimensão ética da responsabilidade é, pois, um apelo previdente, no sentido da prudência e/ou de soluções de equilíbrio, como mostrou lucidamente o filósofo Hans Jonas (1903-1993). Porém, a grande questão que hoje se coloca é saber se os governos e líderes políticos, com as suas opções habituais, estão à altura de responder adequadamente aos novos desafios e exigências.
Mas, como se tudo isto não bastasse, estamos confrontados no presente com uma avassaladora crise económica e financeira de dimensão global, inimaginável ao comum das pessoas bem recentemente. Como foi possível chegarmos a esta situação sem fim à vista? Ainda não há meia dúzia de anos, alguém com algum conhecimento na matéria dizia-me que, desde a época pós-moderna, a ética, por dispensável, ficou à porta do mundo da economia e da finança. Como leigo em tais assuntos, pareceu-me tratar-se de uma generalização apressada e portanto não lhe dei grande crédito, dada a lógica otimista do facilitismo dominante. Certo ou não... a verdade é que todo o mundo anda agora a clamar por transparência democrática, justiça e responsabilidade ética no setor económico-financeiro.
Por mim, fico naquela Esperança que resta no fundo da Caixa de Pandora da narrativa grega, a que aludi no início destas linhas.

João Figueira

quarta-feira, 23 de março de 2011

A Minha Lembrança do Professor Doutor Joaquim de Carvalho

Não vou ocupar-me da vida e obra do ilustre Professor da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra nos domínios do Magistério e da Cultura Portuguesa, nomeadamente o pensamento filosófico tão do seu agrado. Nem do seu posicionamento político, face às vicissitudes e convulsões por que passaram o País e o Mundo na primeira parte do séc. XX.
Gostaria, antes, de sublinhar que Joaquim de Carvalho (1882-1958) não deixa de constituir ainda hoje um verdadeiro paradigma intelectual e moral para as novas gerações com responsabilidades futuras. Efetivamente este vulto figueirense foi um luminar de primeira grandeza da inteligência portuguesa do século.
AS RAZÕES DE UMA OPÇÃO
No dealbar da década de cinquenta, Joaquim de Carvalho já havia atingido os cumes da notoriedade junto dos seus pares de aquém e além fronteiras. Mas foi, sem dúvida, com a jornada cultural por terras do Brasil, em cinquenta e três, que a carreira universitária do nosso Pensador — sempre associada à investigação e à divulgação da Cultura Portuguesa e não só —, chegou ao zénite.
Ele próprio vibrou entusiasticamente com o acolhimento que lhe proporcionaram os nossos irmãos brasileiros na sua passagem pelas longínquas paragens de Terras de Vera Cruz. Em confidência ao seu amigo Dr. João de Barros (1881- 1960), outro ilustre figueirense, exprimiu-se nos termos seguintes: “O Brasil ficou gravado no meu coração”. Se bem me lembro, foi por essa altura que ouvi falar pela primeira vez no devoto estudioso de Bento de Espinosa, filósofo holandês do séc. XVII, de ascendência judaico-portuguesa. Nesse tempo, andava eu pelos bancos da escola secundária, no Funchal. O meu professor de História, dr. Sousa e Freitas, numa recordação dos seus tempos de estudante, pronunciou o nome do Professor de Filosofia de Coimbra, Joaquim de Carvalho, com admiração. Pelo teor da conversa suponho que tenha estudado na Universidade de Coimbra.
Passado algum tempo, concluído o liceu, eu tinha que optar: matricular-me em Lisboa ou Coimbra. E, com efeito, não era nada fácil a escolha. Lisboa sempre era a capital de Portugal e cabeça do Império, o que, para a generalidade da mocidade mais escolarizada da Ilha da Madeira, pesava na decisão. Nesse tempo era voz corrente: “Quem não viu Lisboa não viu coisa boa!”
Por outro lado, Coimbra era uma tentação sedutora...cidade dos doutores, dos emblemáticos fados e guitarradas, das lendárias tradições académicas... Vista da minha Ilha, Coimbra era uma legenda plena de magia!
Este vivo sentimento reforçou-se no meu espírito com o estudo na escola secundária da disciplina de Literatura Portuguesa, nomeadamente das obras de Rodrigues Lapa, Hernâni Cidade, Fidelino de Figueiredo e outros, sob a docência do dr. Cardeal Nunes. Então convenci-me que, nada de verdadeiramente significativo, no plano cultural, ocorreu na Pátria Portuguesa ao longo dos sécs., sem que estivesse relacionado direta ou indiretamente com a Lusa Atenas. Foi, pois, neste contexto que teve eco no meu íntimo o nome do Professor Joaquim de Carvalho, Mestre prestigiado. Julgo que os factos e circunstâncias expostos propiciaram um clima favorável à minha opção por Coimbra.
O CONTACTO COM O PROFESSOR
No ano letivo de 1957/58 encontrava-me a cumprir o serviço militar obrigatório e , por sinal, colocado no Regimento de Infantaria nº 12, de Coimbra. Paralelamente, e sempre que possível, frequentava as aulas do 3.º ano da Licenciarura em Ciências Histórico-Filosóficas. O Doutor Joaquim de Carvalho, lecionava, então, a cadeira de História da Filosofia Moderna e Contemporânea, e História da Educação - esta do curso de Ciências Pedagógicas.
Apesar de não ter podido assegurar a lecionação completa desse ano, dada a progressão da doença grave que vitimá-lo-ia em Outubro, foi o bastante para conservar a grata lembrança do Professor competentíssimo e a vivência do Mestre humaníssimo.
No plano das relações pessoais sensibilizou-me o contacto fácil, espontâneo e afável.
Lembro-me de em determinado dia, quando abordava a Vida e Obra do filósofo francês René Descartes (1596-1650), concretamente a sua participação na Guerra dos Trinta Anos e, dada a circunstância de me encontrar fardado, Joaquim de Carvalho aproveitou este facto para me interpelar e tecer considerações sobre a vida militar do autor do “Discurso do Método”. Também algumas vezes, como era seu hábito, encontrava-o a passear no átrio da Faculdade de Letras e espontaneamente se me dirigir. Creio que pelo simples prazer de conversar e apreciar o convívio dos seus alunos.
Falava-lhe da Madeira - a terra e as gentes; o Professor discorria serenamente sobre a sua viagem por via marítima ao Brasil, com escala no Funchal. Recordo-me bem de, no andar da conversa, ter estabelecido uma certa analogia entre a fisionomia paisagística do Funchal e a Riviera Francesa. A diferença estava - disse o Professor - na maior presença da intervenção do homem na região mediterrânea, também conhecida por Costa Azul. Depois foi o desenvolvimento da doença ... e a morte inevitável!
Conhecido que foi na cidade de Coimbra o desenlace fatal, dirigi-me à Clínica de Santa Isabel, de seu filho dr. Manuel, na Rua dos Combatentes, onde me recolhi por instantes diante do seu ataúde envolto pelas bandeiras do Brasil e de Portugal. Pelo meu espírito ecoavam ainda as lições do Sage e nele ficou a gostosa e grata lembrança de uns momentos de conversa extra-aulas que revelaram o outro lado, também importante, do Professor — a dimensão humana de Joaquim de Carvalho. Estava consumada a trajetória terrena do ilustre Catedrático da FLUC, mas permanece na memória dos seus alunos e amigos, e no legado cultural inestimável que transmitiu à posteridade.
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Afirmo com satisfação e orgulho que foi um privilégio, que muito prezo, tê-lo como Professor e vivenciado a sua proximidade enquanto seu aluno, embora um tanto rápida e acidental. Com efeito, trata-se de um Homem que profundamente devassou os escaninhos da “Alma” Portuguesa e entusiasticamente soube defender em inúmeras intervenções públicas no País e no estrangeiro os nossos valores culturais, convencido desde 1916, que “o Génio Nacional, como unidade una e livre, se devia refletir na Filosofia”. O seu legado de erudito e investigador probo continuará, por certo, uma referência obrigatória para todos os exigentes estudiosos da Cultura Portuguesa.
Por isso, a atribuição do seu nome à minha Escola significou um ato acertado e uma homenagem justíssima ao Cidadão exemplar, ao sábio Professor, ao Historiador probo e ao Filósofo de espírito largo e verrumante. Pela qualidade e amplitude da obra realizada, nobilitou a sua Terra Natal e a Nação Portuguesa.
[in Sinal, n.1. Publicação da Escola Dr. Joaquim de Carvalho]

João Figueira  

sexta-feira, 18 de março de 2011

Lembrando o 20 de Fevereiro 2010





MADEIRA, MINHA TERRA SOFRIDA Pesada angústia foi ver, mesmo a distância, o que se passou naquela fatídica noite de 20 de Fevereiro. Dir-se-ia que os poderosos elementos da Natureza se congregaram para, em poucas e imprevistas horas de fúria, provocarem uma pavorosa devastação de que não tenho memória na minha já longa vida. O trabalho da comunicação esteve no seu melhor, mostrando-nos de forma objectiva e assaz impressiva a dimensão da tragédia que se abateu sobre aquele pedaço de terra portuguesa que ganhou jus ao epíteto de “Pérola do Atlântico”.
Há mais de meio século que me fixei no Portugal continental. Porém foram inúmeras as viagens à terra natal com minha mulher e os filhos em tempo de veraneio ou nas quadras festivas do Natal ou da Páscoa. A chegada e a permanência na Ilha assumiu sempre foros de festa. Ele eram os banhos nas águas cristalinas e tépidas daquele mar; ele eram os apreciados passeios de automóvel por montanhas e lugares da minha terra, bem como os percursos pedonais por levadas e veredas. Enfim..., a degustação de alguns pratos típicos da culinária local. Da iniciativa e o bom gosto encarregava-se a família. Mas para além deste bem-estar psicofisiológico, há outros ingredientes predominantemente de ordem sentimental e emocional que povoam a minha memória e se intensificam com o passar dos anos, como se as recordações de outrora aflorassem à consciência tanto mais fácil quanto mais distantes no tempo. É este um gostoso regresso às origens que se consubstancia num sentimento de consciência saudosa.
Volto à inaudita devastação provocada pelas quebradas e enxurradas que desabaram pelas encostas da montanha. Pessoas, animais, haveres, materiais indiferenciados, muitas toneladas de pedras e imensa lama transformaram as principais e bonitas artérias do Funchal numa autêntica lixeira. Era um espectáculo arrepiante e deprimente nunca visto! Cheguei mesmo a temer pela sorte de algumas edificações emblemáticas do centro da cidade onde predomina um tipo de pedra basáltica, também conhecida por cantaria “rija”, originária da empresa de meu avô sediada no sítio de Covão, concelho de Câmara de Lobos. Meu pai e irmãos continuaram a obra do seu progenitor até à sua extinção nos anos setenta. Quando vou ao Funchal, quedo-me a venerar essas pedras que tanto me falam, e me contam estórias dos recuados tempos da minha mocidade e juventude. Felizmente, neste particular, nada aconteceu de grave, pese embora a proximidade de uma ameaça real, eminente.
Mas a tragédia também atingiu outras zonas da Ilha com o seu cortejo de destruição em perda de vidas e bens de elevada monta. Conservo na memória episódios da grande luta do madeirense pela sobrevivência, nomeadamente nos anos de profunda crise a seguir à Segunda Guerra Mundial. Mas essa tem sido tradicionalmente a sina do meu povo que, quer no torrão natal, quer na diáspora, tem sabido arrostar com toda a espécde adversidades. O exemplo mais evidente da Madeira rural, profunda, está nessa coragem e esforço continuados pela superação das limitações adversas, nessa gesta hercúlea de transformar a encosta da montanha em socalcos (“poios”, no vocabulário regional). Aqui a “fome de terra” assume a expressão de tal acuidade que julgo não ter paralelo em qualquer parte do país e não só. A título de uma singularidade exemplar, recordo uma plantação de bananeiras sensivelmente a meio da falésia do Cabo Girão (o 2.º maior cabo do mundo, 580 m. de altura) que, para mim, constitui uma dádiva da Natureza, espécie de réplica dos “jardins suspensos” da Babilónia, uma das sete maravilhas do Mundo Antigo. Na verdade, a par da paisagem urbana, densamente povoada, a Madeira apresenta outra face: a da admirável e dura realidade de uma autêntica epopeia rural.
foto de Maria de Fátima Silva


E concluo na firme convicção de que aquela terra dorida vai voltar ao que era. Com o trabalho árduo da sua população, o empenho das autoridades regionais, centrais e a solidariedade à escala nacional e internacional, a Madeira vai decididamente vencer a tragédia natural de que foi vítima, qual Fénix Renascida das fatídicas e medonhas nuvens vindas do Oceano. A força anímica ancorada na Fé de Nossa Senhora do Monte, cuja igreja fica sobranceira ao Funchal, e a proteção da milagrosa Imaculada Conceição, da destruída capela do Largo das Babosas (foto ao lado), constituem penhor de vitória final, acredita a gente da minha terra sofrida.