O denominado retábulo e altar do Pentecostes ou do Espírito Santo é uma peça escultórica de relevante valor patrimonial. Nos anos 30 do séc. passado foi transferido do mos
teiro cisterciense de Seiça e instalado no topo da capela do lado do Evangelho da igreja Matriz figueirense. Trabalhado em pedra de Ançã, apresenta caraterísticas de estilo renascentista, o que o torna
cronologicamente contemporâneo das valiosas esculturas de São Julião e de Sta. Luzia. Ao longo dos tempos sofreu vicissitudes que vão desde o simples abandono, a partir da extinção das Ordens Religiosas após a vitória liberal em todo o país, em 1834, atingindo um estado de degradação tal nos finais do séc. XIX que o governo da nação declarou desresponsabilizar-se pela sua conservação. Porém, e finalmente, surgiu uma luz no fundo do túnel ! ... As afinidades estilísticas entre as imagens e o conjunto escultórico do retábulo colocam-nos num contexto que leva ao reconhecimento e admiração por esse período da história da arte renascentista, na região do Baixo Mondego. A sua entrega à custódia do Museu Santos Rocha viabilizou o seu restauro, pese embora a adulteração parcial a que a peça foi sujeita, em conformidade com as opções estéticorreligiosas dominantes na época. A sua instalação definitiva na Matriz ocorreu nos anos 30. Todavia a temática escultórica do retábulo foi conservada.
Segundo um texto a que tivemos acesso, as alterações na peça aconteceram “no remate superior. Os primitivos nichos laterais com santos foram substituídos pelas aletas de ligação entre as pilastras que enquadram o Padre Eterno e as extremas encimadas por urnas de perfil moderno.
A manipulação mais ousada consistiu, no entanto, na substituição das primitivas esculturas laterais em alto relevo de S. Bernardo e de Sto. António pelas de Sto. Amaro e S. Pedro, este colocado à direita no plano frontal do observador (...). Assim, o retábulo que se apresenta hoje na capela do Espírito Santo remete para um outro universo físico e concetual em total rutura com o configurado na capela do Pentecostes do mosteiro cisterciense”(1)
Porém, um restauro que o reponha numa situação análoga ao seu originário contexto colidiria com as novas conceções que militam em prol de uma dinâmica integradora da marca do tempo cuja ação sobre os objetos conduz a um novo diálogo, a uma nova forma de interpretação discursiva.
Nesta ótica, a leitura das esculturas da capela, segundo a nova estratégia do espaço que possibilita a ampliação do olhar, favorece mais possibilidades de leitura. Com efeito, por força da instalação das imagens de São Julião e de Sta. Luzia, tornou-se imperiosa a contração quer para o equilíbrio global do espaço da capela, quer para a valorização do retábulo. Por outro lado, a deslocação da iluminação para uma posição lateral e rasante favorece uma perceção positiva do painel escultórico, situando-nos no contexto renascentista, como acontece em alguns altares de João de Ruão, por ex., na capela de Varziela. Por conseguinte, a luz rasante através da fresta da caixa que alberga as duas esculturas potencia a qualidade narrativa das temáticas escultóricas do retábulo, bem como destaca as suas diferentes caraterísticas volumétricas.
A solução encontrada para a colocação das imagens de São Julião e de Sta. Luzia permitirá, pois, um outro nível de leitura dos dois “momentos escultóricos”.
A capela do Espírito Santo da Matriz continua a manter a função de ligação aos espaços contíguos da secretaria e dos confessionários. Todavia, o projeto implementado assume doravante outras valências: as dimensões de sentido pedagógico e contemplativo. A abóbada de berço remete-nos para a simbólica do mundo celeste, assim como a contração do espaço entre as paredes laterais da capela permite uma visão mais concentrada do retábulo, o que se enquadra numa linha estética do Renascimento. Outrossim o simbolismo da escada, que dá acesso à plataforma das duas esculturas, constitui um suporte imaginativo da ascensão espiritual. Há mosteiros cistercienses com o nome de Scala Dei (Escada de Deus). Os degraus também assumem a forma simbólica de ligação terra e céu. Ou seja, figuram a ponte que possibilita a ascensão espiritual da alma. Assim entendiam os Padres da Igreja e os místicos da idade Média.
A presença da pia batismal na capela dificultava, obviamente, a leitura iconográfica existente, pelo que se afigurou consensual o seu retorno ao espaço onde esteve até à década de 70, data da realização de obras que levaram à sua instalação na capela do Espírito Santo.
A realização desta obra fica a dever-se ao empenho entusiástico do Rev. Cónego João Coutinho Veríssimo com a criteriosa intervenção dos arquitetos Miguel Figueira e Pedro Vieira.
João Figueira, Crónica, in "Dever" e "A Voz da Figueira", dez. 2011
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(1) Prof.ª Doutora Maria de Lurdes Craveiro, do Instituto de História da Arte da FLUC
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