O tempo que já passou pesa muito mais do que o que está para vir (Marcel Proust)
Trata-se de uma narrativa de memórias ainda não publicada em livro—ECOS DE MINHA MEMÓRIA (EXCERTOS)—, gentilmente cedidos pela escritora Maria Luisete Cardoso Baptista. É uma peça literária escrita na primeira pessoa. Um relato de inquestionável autenticidade, fruto de uma experiência vivida em condições dramáticas num espaço e num tempo de sombras e pesadelos do território angolano. É pois uma descrição deveras impressiva, dir-se-ia escrita com o próprio sangue da escritora.
Quando tudo aconteceu, tinha Maria Luisete treze anos em Março de 1961. Era ainda a fase do desabrochar para a vida adulta. Como qualquer jovem da sua idade, acalentava sonhos e projetos no seu íntimo. Na terra natal (Santa Leocádia, Tabuaço, Viseu) os recursos para uma vida minimamente equilibrada e satisfatória eram escassos. Com efeito, na década de sessenta a miragem da emigração generalizada estava na ordem do dia. Conhecemos bem esse fenómeno da diáspora portuguesa que nos tocou também de perto entre familiares e amigos.
A família de Luisete, perseguindo uma estrela de melhor sorte, decidiu fixar-se em Angola. Mas a jovem apenas precisava de paz, segurança e um ambiente acolhedor, propício à valorização das suas potencialidades. Porém, os ventos da História repentinamente mudaram. Parecia coisa impossível!... O que aconteceu?!
A narradora situa o início da ação na fazenda dos pais a pouca distância da povoação Bembe, no norte angolano. E informa: “ Eu e os meus irmãos (...) pouco ou nada compreendíamos do que estava a acontecer e a razão de tal procedimento por parte dos angolanos negros. (...) Nessa fatídica noite (...), sons de batuque (...) chegavam até nós, como que anunciando, pressagiando algo de terrível”. Todo o espaço da região norte foi atingido pela tragédia: “Sangue, loucura, revolta, armas, atrocidades praticadas contra tudo e todos invadiram as nossas vidas e quebraram a harmonia, o feitiço de uma felicidade aparente”.
Nestas circunstâncias, era forçoso assentar arraiais numa terra que desse mais segurança. A opção foi o Songo. Instalada aqui a família, a escritora confessa que “descrever os dias subsequentes, a sua amargura e tristeza, é como que pregar um espinho no coração de todos os que viveram esta tragédia”. E, em jeito de ponderação conclusiva, adverte que o veredito da História “terá de fazer justiça à bravura dos homens e crianças, de todas as raças, que caíram ao longo de quinze anos de luta” (...). Mas, como nada acontece por acaso, em toda esta via sacra de dramas e tragédias, que foi o fenómeno angolano de uma descolonização apressada, não podia deixar de aparecer, como que por sortilégio, um Cireneu. Foi o Senhor Caldeira, esse Bom Anjo, que, numa disponibilidade total e tão generosa, acolheu no seu prédio todas as senhoras e crianças foragidas de uma tragédia quase certa.
Perante os relatos trágicos dos acontecimentos, a palavra de ordem era todas as mulheres e crianças fugirem para a cidade do Uige. Era uma dor de alma, um Calvário de choros e lamentos! “Eu, meus irmãos e pais chorávamos também”...
Mas, passadas duas semanas em permanente insegurança, “regressámos ao Songo “através de picadas e matagal”. Aqui também a situação era complicada. Porém, a breve trecho, Maria Luisete com os irmãos, mas agora sem os pais, teve de partir para o Negage, onde tomaram o avião para Luanda com mais duas crianças que lhes foram confiadas. Na capital angolana, longe dos pais sentiram-se perdidas, pois não conheciam ninguém. Estavam entregues à sua sorte. Dominava-as o pavor do medo, da insegurança. Porém, outra vez bafejou-os a sorte! Uma família - qual Bom Samaritano! - acolheu-nos, diz Maria Luisete.
Por fim aconteceu a tão ansiada partida para Portugal, no dia vinte e sete de junho de 1961. Quando o navio zarpa do porto de Luanda, esta jovem vivencia a ambivalência de sentimentos de beleza e tristeza. Na natureza tudo estava pacífico e calmo, mas, por outro lado, à medida que a cidade se afasta dos olhos, mais funda fica no coração. Era a hora do começo de um sentimento antecipado de saudade que jamais se apagará. Pelo contrário, reforçar-se-á ao longo dos anos num processo positivo de reconciliação com o passado. Na verdade, Goethe tinha razão quando enunciou a máxima: Faz da tua dor um poema.
Maria Luisete revive atualmente na escrita, na pintura e na fotografia ((facebook) lampejos desses tempos idos. Porque partilhar as memórias é salutar. Os seus leitores experimentarão decerto sentimentos e/ou emoções de proximidade por admiração ou empatia para com a autora. E por isso lhe ficamos todos - os seus leitores - agradecidos.