terça-feira, 13 de novembro de 2012

À volta do "Dia Mundial da Filosofia", 2011

                                  1 - Filosofar é preciso
Italo Calvino [1923-1985], figura de relevo da literatura italiana, apresenta em “As Cidades Invisíveis” [1972) um quadro fantasioso no qual profetiza o futuro da condição humana. Na descrição intervêm duas personagens: O Grande Kahn, imperador dos tártaros, e o explorador veneziano Marco Paulo. À semelhança de Platão na “Alegoria da Caverna”, para Calvino a contemporaneidade é um tempo de sombras, cinzento, carregado de incertezas e sofrimentos. O diálogo entre os dois decorre da forma seguinte: 
“ O Grande Kahn já estava folheando em seu atlas os mapas das ameaçadoras cidades que surgem nos pesadelos e nas maldições (...).
Disse : — É tudo inútil, se o último porto só pode ser a cidade infernal, que está lá no fundo e que nos suga num vórtice cada vez mais estreito.
E Polo: — O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige  atenção e aprendizagem contínuas : tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno. E preservá-lo e abrir caminho”. 
Aqui está uma questão crítica de desajuste a uma realidade massificada, de pensamento unidimensional, que constitui campo fértil à reflexão filosófica. “Abrir caminho” é filosofar— tarefa necessária... Neste âmbito, José Saramago escreve que “o único antídoto para reverter o mau funcionamento da democracia  é construir uma sociedade crítica que não se limite a aceitar as coisas pelo que elas parecem ser e depois não são, mas se faça perguntas e diga ´não´ sempre que for necessário dizer não. Para isso, é urgente voltar à filosofia e à reflexão”. 
Por seu turno, Jean-Paul Sartre [1905-1980] escreveu um dia que o “inferno são os outros” -, isto em nome da sacrossanta liberdade, dado que, segundo o filósofo existencialista, “ o homem é um projecto de si próprio”, em concordância com o axioma de que a sua “existência precede a essência”. Nesta perspetiva, o homem é livre, “condenado a fazer escolhas livres, mas situadas”. Quer dizer, “ser livre não é fazer aquilo que queremos, mas querer aquilo que podemos”. 
Assim sendo, possui a liberdade de autodeterminar-se, sendo o homem o criador único de todos os valores. O problema é a multiplicidade e diversidade de projetos individuais que originam inevitavelmente situações conflituosas. Neste ponto, Sartre invoca a ideia de responsabilidade, pela qual o homem se torna responsável por si e pela humanidade. “A nossa responsabilidade é muito maior do que poderíamos supor, porque ela envolve toda a humanidade”, na qual se circunscreve, exclusivamente, a vida humana, conclui. Neste contexto sobressai o “sentimento de angústia”. E, nas mais diversas manifestações do conviver  humano: o sadismo, o ódio, o masoquismo, a indiferença... É nesta ótica que Sartre sente a necessidade de mostrar a dimensão ética do Existencialismo, para o que escreve o ensaio “O Existencialismo é um Humanismo”(1946).
Partindo de pressupostos diferentes, I.Kant [1724-1804], filósofo idealista, à interrogação “que devo fazer? enuncia o seguinte imperativo: “Age de tal modo que a máxima da tua vontade possa valer sempre ao mesmo tempo como princípio de uma lei universal”. Com efeito, nestes dois filósofos, as escolhas nos domínios morais e/ou éticos, além de individuais têm uma abrangência que atinge todos os homens, embora divirjam noutros domínios.
Servem estas considerações de introdução  aos temas selecionados para a celebração do passado “Dia Mundial da Filosofia”. O evento teve lugar no Casino Figueira, fruto de uma louvável parceria com a Escola Secundária c/3 CEB Dr Joaquim de Carvalho. No âmbito da proposta da Unesco para a celebração da efeméride na terceira semana de Novembro, foi escolhido o dia 17, pelas 21h. e 30m. Na qualidade de anfitrião, o Dr. Domingos Silva, dinâmico administrador do Casino que o transformou, ao longo do tempo, também em Casa de Cultura da Beira Litoral, apresentou os conferencistas e saudou os presentes que ocupavam literalmente o espaço do salão café. A larga maioria eram estudantes do ensino secundário. Impunha-se dar continuidade a um projeto/debate iniciado aquando das comemorações do 50.º aniversário da morte do ilustre figueirense Professor de Filosofia na FLUC, Doutor Joaquim de Carvalho. 
A preceder os debates, um neto de Joaquim de Carvalho traçou em linhas gerais o projeto em curso, que conta com o apoio do Casino, e visa a disponibilização na Net da Obra escrita e documentos fotobiográfícos e epistolares respeitantes a seu Avô. Tal deve acontecer por volta mês de janeiro próximo.
                            2 - Do objeto e fins do filosofar
  O filosofar não tem um domínio específico de objetos, como acontece nas ciências.  
Pelo contrário, consiste num enfoque do espírito que coloca qualquer objeto sob a perspetiva da reflexão problematizante. Assim, não interessa de que assunto podemos partir para a filosofia. Por exemplo, o Ser e o Nada  não fazem parte do objeto de qualquer ciência, mas, pelo contrário, constituem temática de altas e de prenhes consequências no âmbito da reflexão filosófica. 
O desafio que desencadeou as celebrações da efeméride ficou a dever-se ao jornalista, analista político e professor do Ensino Superior, Carlos Magno, que tem assumido o papel de moderador nas edições anteriores. A propósito de ética, citou o filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein [1889-1951] que, de acordo com o seu ideário filosófico contido no Tratactus Logico-Philosophicus, quando alguém disser algo de “metafísico”, conotado com a ética, por exemplo, deve explicar o significado preciso e claro do que diz, reformulando as suas proposições, no sentido de tornar claros os seus pensamentos, inclusive impondo-lhe limites - ideia de inspiração (neo)positivista. O moderador referiu um artigo publicado, ainda não há meia dúzia de anos, na revista americana “Time”, na qual se faz a apologia da aceitação de formados em Filosofia nos quadros das empresas, o que mostra bem a sua pertinência nas problemáticas que envolvem o vasto e complexo mundo do trabalho, hoje.
Marcado para o dia 17 de Nov., pelas 21h. e 30m, o painel de conferencistas foi constituído por três docentes  universitários: Anselmo Borges, teólogo, filósofo e professor na FLUC; José Manuel Moreira, economista, filósofo e  professor na Univ. de Aveiro; José Maria Gomez - Heras, filósofo e professor nas Univ. de Salamanca, Córdova e Complutense de Madrid. Os temas versados — “Ética, Economia, Ambiente e Política” —assuntos de incontestável atualidade. 
Anselmo Borges conotou a ética com a liberdade. Sem esta, não é possível perseguir a senda da dignidade humana. Como nas sociedades há corrutos, homicidas, mentirosos..., impõe-se a sanção do Estado através da aplicação coerciva das leis pelos tribunais. Daí que, “quanto menos éticos forem os cidadãos mais necessária é a política”, asseverou. 
José Manuel Moreira, mais voltado para a área económica, campo a que se tem dedicado preferencialmente, considera que hoje “está na moda a palavra ética”. Todos reclamam a ética nas mais variadas situações humanas. À questão, para que serve a ética? disse que “serve para melhorar as coisas ... A ética, mais do que condenar a pessoa, promove-a, conduzindo a metas que de outra forma seriam inacessíveis”. Trata-se de uma “disciplina prática, normativa, que, fundando-se na razão, dirige-se prioritariamente à vontade da pessoa livre e consciente dos cidadãos”. 
José Maria Garcia Gomez-Heras avança a ideia que a nossa sociedade é plural, ideológica e culturalmente. Daí que os conflitos entre valores e tradições culturais façam parte da vida quotidiana. Para dirimi-los, impõe-se diferenciar a esfera pública, regida pelo princípio da justiça através da aplicação do direito, e a esfera privada, que, mediante o poder do Estado, garante o princípio da liberdade. As temáticas privilegiadas do seu trabalho filosófico andam à volta da ética ambiental e a bioética. O autor frisa que “a forma mais eficaz para enfrentar o fanatismo terrorista é a defesa daqueles valores que configuram a civilização ocidental e que esta conquistou a sangue e fogo... A linguagem que permite falar de Deus é aquela que parte da liberdade gerada no mundo da vida, fonte de vivência íntima, valor e concórdia”.