MADEIRA, MINHA TERRA SOFRIDA Pesada angústia foi ver, mesmo a distância, o que se passou naquela fatídica noite de 20 de Fevereiro. Dir-se-ia que os poderosos elementos da Natureza se congregaram para, em poucas e imprevistas horas de fúria, provocarem uma pavorosa devastação de que não tenho memória na minha já longa vida. O trabalho da comunicação esteve no seu melhor, mostrando-nos de forma objectiva e assaz impressiva a dimensão da tragédia que se abateu sobre aquele pedaço de terra portuguesa que ganhou jus ao epíteto de “Pérola do Atlântico”.
Há mais de meio século que me fixei no Portugal continental. Porém foram inúmeras as viagens à terra natal com minha mulher e os filhos em tempo de veraneio ou nas quadras festivas do Natal ou da Páscoa. A chegada e a permanência na Ilha assumiu sempre foros de festa. Ele eram os banhos nas águas cristalinas e tépidas daquele mar; ele eram os apreciados passeios de automóvel por montanhas e lugares da minha terra, bem como os percursos pedonais por levadas e veredas. Enfim..., a degustação de alguns pratos típicos da culinária local. Da iniciativa e o bom gosto encarregava-se a família. Mas para além deste bem-estar psicofisiológico, há outros ingredientes predominantemente de ordem sentimental e emocional que povoam a minha memória e se intensificam com o passar dos anos, como se as recordações de outrora aflorassem à consciência tanto mais fácil quanto mais distantes no tempo. É este um gostoso regresso às origens que se consubstancia num sentimento de consciência saudosa.
Volto à inaudita devastação provocada pelas quebradas e enxurradas que desabaram pelas encostas da montanha. Pessoas, animais, haveres, materiais indiferenciados, muitas toneladas de pedras e imensa lama transformaram as principais e bonitas artérias do Funchal numa autêntica lixeira. Era um espectáculo arrepiante e deprimente nunca visto! Cheguei mesmo a temer pela sorte de algumas edificações emblemáticas do centro da cidade onde predomina um tipo de pedra basáltica, também conhecida por cantaria “rija”, originária da empresa de meu avô sediada no sítio de Covão, concelho de Câmara de Lobos. Meu pai e irmãos continuaram a obra do seu progenitor até à sua extinção nos anos setenta. Quando vou ao Funchal, quedo-me a venerar essas pedras que tanto me falam, e me contam estórias dos recuados tempos da minha mocidade e juventude. Felizmente, neste particular, nada aconteceu de grave, pese embora a proximidade de uma ameaça real, eminente.
Mas a tragédia também atingiu outras zonas da Ilha com o seu cortejo de destruição em perda de vidas e bens de elevada monta. Conservo na memória episódios da grande luta do madeirense pela sobrevivência, nomeadamente nos anos de profunda crise a seguir à Segunda Guerra Mundial. Mas essa tem sido tradicionalmente a sina do meu povo que, quer no torrão natal, quer na diáspora, tem sabido arrostar com toda a espécde adversidades. O exemplo mais evidente da Madeira rural, profunda, está nessa coragem e esforço continuados pela superação das limitações adversas, nessa gesta hercúlea de transformar a encosta da montanha em socalcos (“poios”, no vocabulário regional). Aqui a “fome de terra” assume a expressão de tal acuidade que julgo não ter paralelo em qualquer parte do país e não só. A título de uma singularidade exemplar, recordo uma plantação de bananeiras sensivelmente a meio da falésia do Cabo Girão (o 2.º maior cabo do mundo, 580 m. de altura) que, para mim, constitui uma dádiva da Natureza, espécie de réplica dos “jardins suspensos” da Babilónia, uma das sete maravilhas do Mundo Antigo. Na verdade, a par da paisagem urbana, densamente povoada, a Madeira apresenta outra face: a da admirável e dura realidade de uma autêntica epopeia rural.
foto de Maria de Fátima Silva |
E concluo na firme convicção de que aquela terra dorida vai voltar ao que era. Com o trabalho árduo da sua população, o empenho das autoridades regionais, centrais e a solidariedade à escala nacional e internacional, a Madeira vai decididamente vencer a tragédia natural de que foi vítima, qual Fénix Renascida das fatídicas e medonhas nuvens vindas do Oceano. A força anímica ancorada na Fé de Nossa Senhora do Monte, cuja igreja fica sobranceira ao Funchal, e a proteção da milagrosa Imaculada Conceição, da destruída capela do Largo das Babosas (foto ao lado), constituem penhor de vitória final, acredita a gente da minha terra sofrida.
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