quarta-feira, 18 de julho de 2012

UM HOMEM, UMA VIDA, UM DESTINO


Não fui um íntimo ou áulico do poeta Afonso Duarte. Nem sequer tive o prazer de lhe apertar a mão, mas ainda o conheci no café Arcádia, da baixa de Coimbra, nos últimos dois anos da sua vida. Evocar o autor de “Os 7 Poemas Líricos”, é um ato de justiça pelo testemunho que deixou de saúde intelectual, de verticalidade moral e de cidadão exemplar. Vou debruçar-me um pouco sobre a vida deste homem cuja existência foi marcada pelo ferrete da adversidade e, por isso mesmo, ele foi o que foi. A sua obra poética é a expressão da sua vida. Incentivado pelos amigos, escreveu, proferiu conferências, exigiu a intervenção de intelectuais nos problemas fundamentais e viveu com a frescura de quem está sempre a começar. 

Desta forma se exprimiu: “O nosso mal é não ver / Que somos tão diferentes / Por cada tempo que morre: / Não se acaba de nascer.”(1) Mas o poeta do Baixo Mondego compartilhou do destino de todos aqueles que nasceram para beber até à última gota o travo amargo da vida. Aos trinta e poucos anos de idade foi vítima de grave doença (paraplegia), então alferes miliciano no forte de Caxias, Lisboa. Mas, apesar de tudo, amou a vida e nunca deixou de a cantar. Como nestes bonitos e comovedores versos: “Mostra-me a vida, ao choro que eu derramo, / Que é apenas drama o que o que ela me tem feito! / E, santíssimo, é Ela que eu mais amo.”(2) 
Com efeito, o afastamento compulsivo imposto, em 1932, à notável obra pedagógica e etnográfica que entusiasticamente vinha realizando na Escola Normal Primária de Coimbra, marcou-o profundamente. Depois de uma luta persistente de sete anos contra “homens sem rosto”, passou à situação de aposentado em 1939. Na realidade, motivos tinha o poeta para se lançar nos braços de uma qualquer panaceia, ou se fechar na contemplação das próprias dores. Mas não é isso que acontece. Ele, o “—Príncipe que fugiu a ser escravo —”(3), como se definiu, assume uma postura mordaz contra os que se bandearam para o campo adverso quando os ventos mudaram: “Não pronuncio nomes detestáveis / E dou com eles às vezes nos jornais; / E nem sequer lhes chamo miseráveis / E foram-no demais .”(4)
Afonso Duarte foi, pois, um daqueles causticados por múltiplas forças adversas. A alguém que estava tratando do seu caso [contra a suspensão forçada da atividade docente], o poeta teve um desabafo bem revelador da sua postura cívica e ética: “O meu caso é bem digno de interessar um amigo, pois não é só um caso único de injustiça ao funcionário do Estado; é também um caso de ingratidão sem nome ao pobre do homem que dentro do magistério oficial criou uma obra que passou as fronteiras e toda ela feita de um grande amor à nossa Terra.”(5) São ainda dele estas palavras dramáticas: “Fiquei ao abandono: sem vencimento... e, como aposentado, em situação de inferioridade flagrante perante os outros funcionários aposentados pela lei que me aplicaram.”(6) Porém não se acomodou e respondeu sempre, aceitando o desafio com um estoicismo exemplar. E a consciência do valor próprio e o espírito cívico de bem servir estão patentes neste trecho modelar: “Mas que bem servi o meu País, é o que ninguém poderá negar-me... Receio não tenho algum que me acusem de menos nacionalista, porque ninguém terá mostrado com melhor sentido, em treze anos de persistente esforço, que “as coisas de Portugal todas têm grande valor — como deixou dito Mestre Gil Vicente — para todos os campos da minha atividade e, principalmente, no campo educativo.”(7) 
Afonso Duarte empenhou-se também nos problemas e necessidades da sua terra - freguesia de Ereira. Só dois exemplos. 
Fez parte da comissão administrativa responsável pela criação da escola primária local (hoje desativada e em estado de abandono, sem destino assegurado) e chegou mesmo a afirmar que teve sérias arrelias com os empreiteiros. E aquando das comemorações da elevação da Ereira a freguesia (Abril de 1985), Joaquim Simões Cantante, um ereirense empenhadíssimo nas questões da sua terra, referiu as palavras ditas pelo poeta em 1930, a propósito de uma oportunidade gorada para a emancipação da Ereira . Nesta ocorrência A. Duarte desabafou: “Perdemos a batalha mas não perdemos a guerra. Temos de continuar a lutar!”... E concluiu Simões Cantante: “Passados 55 anos cumpriu-se o sonho de todos nós e também a profecia de Afonso Duarte”.
Mas, apesar do drama que foi a sua vida, o poeta teve a sorte de encontrar bons amigos com quem desabafava as suas mágoas. A poetisa brasileira Cecília Meireles (1901-1964) foi uma das personalidades de relevo com quem manteve um contacto privilegiado sobre interesses culturais recíprocos. Exprimiu-se a grande escritora desta forma muito bonita: “ O dom do poeta é olhar com enternecimento até para a infelicidade. E tornar-se, por fim, motivo de admiração na maior dor.”(8) No fim da vida, o autor de “Post -Scriptum de um Combatente” bem podia dizer com Alfred Musset (1810-1857): “O homem é um aprendiz e a dor o seu mestre”.
Afonso Duarte foi um espírito humaníssimo que perante a vida e os homens soube assumir uma atitude humilde e densa de sabedoria, como mostram estas duas sentenças: “Sê sóbrio, / E sorri das tonturas dos medíocres / Com dó e piedade. / Não descubras que existes: / Tem caridade.”(9) Ou ainda estoutra: “Darmos as mãos uns aos outros, / É o preço da nossa cruz. / É esta lei tão humana, / A própria lei de Jesus.”(10) 
E foi assim Afonso Duarte — UM HOMEM, UMA VIDA, UM DESTINO.


João Figueira
Notas
1 ”Lápides e outros poemas” (1956-1957). Iniciativas Editoriais, Lisboa
2 Naufrágio, in “Ritual do Amor”
3 Soneto de Ereira, in “Ossadas”
4 Epigramas e Sátiras, in “O Anjo da Morte e Outros Poemas”
5 Anotações do poeta
6 Idem, Ibidem
7 Idem, Ibidem
8 Cecília Meireles, correspondência
9 Sentença, in “Ossadas”
10 Quadrinha na pastinha das crianças da Casa de Infância Dr. Elísio de Moura - Queima das Fitas