terça-feira, 13 de novembro de 2012

À volta do "Dia Mundial da Filosofia", 2011

                                  1 - Filosofar é preciso
Italo Calvino [1923-1985], figura de relevo da literatura italiana, apresenta em “As Cidades Invisíveis” [1972) um quadro fantasioso no qual profetiza o futuro da condição humana. Na descrição intervêm duas personagens: O Grande Kahn, imperador dos tártaros, e o explorador veneziano Marco Paulo. À semelhança de Platão na “Alegoria da Caverna”, para Calvino a contemporaneidade é um tempo de sombras, cinzento, carregado de incertezas e sofrimentos. O diálogo entre os dois decorre da forma seguinte: 
“ O Grande Kahn já estava folheando em seu atlas os mapas das ameaçadoras cidades que surgem nos pesadelos e nas maldições (...).
Disse : — É tudo inútil, se o último porto só pode ser a cidade infernal, que está lá no fundo e que nos suga num vórtice cada vez mais estreito.
E Polo: — O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige  atenção e aprendizagem contínuas : tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno. E preservá-lo e abrir caminho”. 
Aqui está uma questão crítica de desajuste a uma realidade massificada, de pensamento unidimensional, que constitui campo fértil à reflexão filosófica. “Abrir caminho” é filosofar— tarefa necessária... Neste âmbito, José Saramago escreve que “o único antídoto para reverter o mau funcionamento da democracia  é construir uma sociedade crítica que não se limite a aceitar as coisas pelo que elas parecem ser e depois não são, mas se faça perguntas e diga ´não´ sempre que for necessário dizer não. Para isso, é urgente voltar à filosofia e à reflexão”. 
Por seu turno, Jean-Paul Sartre [1905-1980] escreveu um dia que o “inferno são os outros” -, isto em nome da sacrossanta liberdade, dado que, segundo o filósofo existencialista, “ o homem é um projecto de si próprio”, em concordância com o axioma de que a sua “existência precede a essência”. Nesta perspetiva, o homem é livre, “condenado a fazer escolhas livres, mas situadas”. Quer dizer, “ser livre não é fazer aquilo que queremos, mas querer aquilo que podemos”. 
Assim sendo, possui a liberdade de autodeterminar-se, sendo o homem o criador único de todos os valores. O problema é a multiplicidade e diversidade de projetos individuais que originam inevitavelmente situações conflituosas. Neste ponto, Sartre invoca a ideia de responsabilidade, pela qual o homem se torna responsável por si e pela humanidade. “A nossa responsabilidade é muito maior do que poderíamos supor, porque ela envolve toda a humanidade”, na qual se circunscreve, exclusivamente, a vida humana, conclui. Neste contexto sobressai o “sentimento de angústia”. E, nas mais diversas manifestações do conviver  humano: o sadismo, o ódio, o masoquismo, a indiferença... É nesta ótica que Sartre sente a necessidade de mostrar a dimensão ética do Existencialismo, para o que escreve o ensaio “O Existencialismo é um Humanismo”(1946).
Partindo de pressupostos diferentes, I.Kant [1724-1804], filósofo idealista, à interrogação “que devo fazer? enuncia o seguinte imperativo: “Age de tal modo que a máxima da tua vontade possa valer sempre ao mesmo tempo como princípio de uma lei universal”. Com efeito, nestes dois filósofos, as escolhas nos domínios morais e/ou éticos, além de individuais têm uma abrangência que atinge todos os homens, embora divirjam noutros domínios.
Servem estas considerações de introdução  aos temas selecionados para a celebração do passado “Dia Mundial da Filosofia”. O evento teve lugar no Casino Figueira, fruto de uma louvável parceria com a Escola Secundária c/3 CEB Dr Joaquim de Carvalho. No âmbito da proposta da Unesco para a celebração da efeméride na terceira semana de Novembro, foi escolhido o dia 17, pelas 21h. e 30m. Na qualidade de anfitrião, o Dr. Domingos Silva, dinâmico administrador do Casino que o transformou, ao longo do tempo, também em Casa de Cultura da Beira Litoral, apresentou os conferencistas e saudou os presentes que ocupavam literalmente o espaço do salão café. A larga maioria eram estudantes do ensino secundário. Impunha-se dar continuidade a um projeto/debate iniciado aquando das comemorações do 50.º aniversário da morte do ilustre figueirense Professor de Filosofia na FLUC, Doutor Joaquim de Carvalho. 
A preceder os debates, um neto de Joaquim de Carvalho traçou em linhas gerais o projeto em curso, que conta com o apoio do Casino, e visa a disponibilização na Net da Obra escrita e documentos fotobiográfícos e epistolares respeitantes a seu Avô. Tal deve acontecer por volta mês de janeiro próximo.
                            2 - Do objeto e fins do filosofar
  O filosofar não tem um domínio específico de objetos, como acontece nas ciências.  
Pelo contrário, consiste num enfoque do espírito que coloca qualquer objeto sob a perspetiva da reflexão problematizante. Assim, não interessa de que assunto podemos partir para a filosofia. Por exemplo, o Ser e o Nada  não fazem parte do objeto de qualquer ciência, mas, pelo contrário, constituem temática de altas e de prenhes consequências no âmbito da reflexão filosófica. 
O desafio que desencadeou as celebrações da efeméride ficou a dever-se ao jornalista, analista político e professor do Ensino Superior, Carlos Magno, que tem assumido o papel de moderador nas edições anteriores. A propósito de ética, citou o filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein [1889-1951] que, de acordo com o seu ideário filosófico contido no Tratactus Logico-Philosophicus, quando alguém disser algo de “metafísico”, conotado com a ética, por exemplo, deve explicar o significado preciso e claro do que diz, reformulando as suas proposições, no sentido de tornar claros os seus pensamentos, inclusive impondo-lhe limites - ideia de inspiração (neo)positivista. O moderador referiu um artigo publicado, ainda não há meia dúzia de anos, na revista americana “Time”, na qual se faz a apologia da aceitação de formados em Filosofia nos quadros das empresas, o que mostra bem a sua pertinência nas problemáticas que envolvem o vasto e complexo mundo do trabalho, hoje.
Marcado para o dia 17 de Nov., pelas 21h. e 30m, o painel de conferencistas foi constituído por três docentes  universitários: Anselmo Borges, teólogo, filósofo e professor na FLUC; José Manuel Moreira, economista, filósofo e  professor na Univ. de Aveiro; José Maria Gomez - Heras, filósofo e professor nas Univ. de Salamanca, Córdova e Complutense de Madrid. Os temas versados — “Ética, Economia, Ambiente e Política” —assuntos de incontestável atualidade. 
Anselmo Borges conotou a ética com a liberdade. Sem esta, não é possível perseguir a senda da dignidade humana. Como nas sociedades há corrutos, homicidas, mentirosos..., impõe-se a sanção do Estado através da aplicação coerciva das leis pelos tribunais. Daí que, “quanto menos éticos forem os cidadãos mais necessária é a política”, asseverou. 
José Manuel Moreira, mais voltado para a área económica, campo a que se tem dedicado preferencialmente, considera que hoje “está na moda a palavra ética”. Todos reclamam a ética nas mais variadas situações humanas. À questão, para que serve a ética? disse que “serve para melhorar as coisas ... A ética, mais do que condenar a pessoa, promove-a, conduzindo a metas que de outra forma seriam inacessíveis”. Trata-se de uma “disciplina prática, normativa, que, fundando-se na razão, dirige-se prioritariamente à vontade da pessoa livre e consciente dos cidadãos”. 
José Maria Garcia Gomez-Heras avança a ideia que a nossa sociedade é plural, ideológica e culturalmente. Daí que os conflitos entre valores e tradições culturais façam parte da vida quotidiana. Para dirimi-los, impõe-se diferenciar a esfera pública, regida pelo princípio da justiça através da aplicação do direito, e a esfera privada, que, mediante o poder do Estado, garante o princípio da liberdade. As temáticas privilegiadas do seu trabalho filosófico andam à volta da ética ambiental e a bioética. O autor frisa que “a forma mais eficaz para enfrentar o fanatismo terrorista é a defesa daqueles valores que configuram a civilização ocidental e que esta conquistou a sangue e fogo... A linguagem que permite falar de Deus é aquela que parte da liberdade gerada no mundo da vida, fonte de vivência íntima, valor e concórdia”. 

terça-feira, 28 de agosto de 2012

ECOS DO DRAMA DE UMA JOVEM POR TERRAS ANGOLANAS


         O tempo que já passou pesa muito mais do que o que está para vir (Marcel Proust)

  Trata-se de uma narrativa de memórias ainda não publicada em livro—ECOS DE MINHA MEMÓRIA (EXCERTOS)—, gentilmente cedidos pela escritora Maria Luisete Cardoso Baptista. É uma peça literária escrita na primeira pessoa. Um relato de inquestionável autenticidade, fruto de uma experiência vivida em condições dramáticas num espaço e num tempo de sombras e pesadelos do território angolano. É pois uma descrição deveras impressiva, dir-se-ia escrita com o próprio sangue da escritora. 
Quando tudo aconteceu, tinha  Maria Luisete treze anos em Março de 1961. Era ainda a fase do desabrochar para a vida adulta. Como qualquer jovem da sua idade, acalentava sonhos e projetos no seu íntimo. Na terra natal (Santa Leocádia, Tabuaço, Viseu) os recursos para uma vida minimamente equilibrada e satisfatória eram escassos. Com efeito, na década de sessenta a miragem da emigração generalizada estava na ordem do dia. Conhecemos bem esse fenómeno da diáspora portuguesa que nos tocou também de perto entre familiares e amigos. 
    A família de Luisete, perseguindo uma estrela de melhor sorte, decidiu fixar-se em Angola. Mas a jovem apenas precisava de paz, segurança e um ambiente acolhedor, propício à valorização das suas potencialidades. Porém, os ventos da História repentinamente mudaram. Parecia coisa impossível!... O que aconteceu?!
A narradora situa o início da ação na fazenda dos pais a pouca distância da povoação Bembe, no norte angolano. E informa: “ Eu e os meus irmãos (...) pouco ou nada compreendíamos do que estava a acontecer e a razão de tal procedimento por parte dos angolanos negros. (...) Nessa fatídica noite (...), sons de batuque (...) chegavam até nós, como que anunciando, pressagiando algo de terrível”. Todo o espaço da região norte foi atingido pela tragédia: “Sangue, loucura, revolta, armas, atrocidades praticadas contra tudo e todos invadiram as nossas vidas e quebraram a harmonia, o feitiço de uma felicidade aparente”. 
Nestas circunstâncias, era forçoso assentar arraiais numa terra que desse mais segurança. A opção foi o Songo. Instalada aqui a família, a escritora confessa que “descrever os dias subsequentes, a sua amargura e tristeza, é como que pregar um espinho no coração de todos os que viveram esta tragédia”. E, em jeito de ponderação conclusiva, adverte que o veredito da História “terá de fazer justiça à bravura dos homens e crianças, de todas as raças, que caíram ao longo de quinze anos de luta” (...). Mas, como nada acontece por acaso, em toda esta via sacra de dramas e tragédias, que foi o fenómeno angolano de uma descolonização apressada, não podia deixar de aparecer, como que por sortilégio, um Cireneu. Foi o Senhor Caldeira, esse Bom Anjo, que, numa disponibilidade total e tão generosa, acolheu no seu prédio todas as senhoras e crianças foragidas de uma tragédia quase certa. 
   Perante os relatos trágicos dos acontecimentos, a palavra de ordem era todas as mulheres e crianças fugirem para a cidade do Uige. Era uma dor de alma, um Calvário de choros e lamentos! “Eu, meus irmãos e pais chorávamos também”... 
Mas, passadas duas semanas em permanente insegurança, “regressámos ao Songo “através de picadas e matagal”. Aqui também a situação era complicada. Porém, a breve trecho, Maria Luisete com os irmãos, mas agora sem os pais, teve de partir para o Negage, onde tomaram o avião para Luanda com mais duas crianças que lhes foram confiadas. Na capital angolana, longe dos pais sentiram-se perdidas, pois não conheciam ninguém.          Estavam entregues à sua sorte. Dominava-as o pavor do medo, da insegurança. Porém, outra vez bafejou-os a  sorte! Uma família - qual Bom Samaritano! - acolheu-nos, diz Maria Luisete.
Por fim aconteceu a tão ansiada  partida para Portugal, no dia vinte e sete de junho de 1961. Quando o navio zarpa do porto de Luanda, esta jovem vivencia a ambivalência de sentimentos de beleza e tristeza. Na natureza tudo estava pacífico e calmo, mas, por outro lado, à medida que a cidade se afasta dos olhos, mais funda fica  no coração. Era a hora do começo de um sentimento antecipado de  saudade que jamais se apagará. Pelo contrário, reforçar-se-á ao longo dos anos num processo positivo de reconciliação com o passado. Na verdade, Goethe tinha razão quando enunciou a máxima: Faz da tua dor um poema
Maria Luisete revive atualmente na escrita, na pintura e na fotografia ((facebook) lampejos desses tempos idos. Porque partilhar as memórias é salutar. Os seus leitores experimentarão decerto sentimentos e/ou emoções de  proximidade por admiração ou empatia para com a autora. E por isso lhe ficamos todos - os seus leitores - agradecidos.

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

A MULEMBA

      Este é o título do primeiro de cinco já publicados pela escritora Maria Luisete Souto Cardoso Baptista. Agradou-me deveras esta estória infanto-juvenil de uma menina de seis anos cuja narradora é a mãe que a conduz, antes de adormecer, à envolvência de um mundo fantasmagórico onde se deixa seduzir por formigas-brancas, galos, galinhas, ratazanas, passarada, pombas, ponte, rio, árvores... no contexto da imensidão africana que serve de palco ao desenrolar da estória. Com efeito,  todas essas vivências infantis integram-se num mundo mágico de brincadeiras e fantasia onde habita o carinho, a ternura e o amor. Naquele ambiente a criança sonha, o que é maravilhoso, porque “sonhar é viveres coisas fantásticas”- diz-lhe a mãe. 
      Na verdade, é esse mundo de pequenos nadas que os olhos da criança descobrem, como se fosse o limite, o céu, ou o paraíso perdido dos adultos, tantas vezes insensíveis e cegos para o invisível, no qual reside o essencial, que se oculta por baixo do que os nossos sentidos apreendem. O título da obrinha, A Mulemba, escrita numa prosa de inspiração poética, reporta-se a uma ´entidade´ ficcional que na narrativa possui o virtuosismo de se metamorfosear consoante o mundo interior dos sentimentos, emoções, paixões e experiências que perpassam no íntimo da criança, ao longo da sua caminhada existencial. O presente de parabéns do pai, quando a sua menina faz sete anos, é uma árvore frondosa com laço vermelho no tronco porque “era dia de festa, dia dos seus anos e de A Mulemba, nome que significa “árvore de copa muito densa”. Doravante “tornaram-se amigas inseparáveis”. Porém a família deixou a casa grande e mudou-se para um pequeno apartamento. Assim, por falta de espaço, desta vez a opção dos pais, para o presente do dia de anos da sua menina, recai sobre “um cato da loja da esquina”. 
    Entretanto, o mundo idílico e mágico, em que a criança se move, vai agora, confrontar-se com as obrigações escolares impostas pelos ´colonizadores´ adultos que a querem ´moldar´, ao ensinar-lhe coisas que não sente e muito menos entende, por se distanciarem do quotidiano das cores e cheiros que inebriam os seus sentidos e lhe enchem a alma. Este é o mundo dos afetos que lhe transmitem os pais e “a irmã e mãe terra que nos sustenta e nos governa, e dá tantos frutos e coloridas flores”, segundo a mística do poveretto de Assis no admirável Cântico das Criaturas. Afinal, essa outra humanidade, no dizer do Poeta. 
  Todavia o choque de mudança da menina para a escola leva a evadir-se da sala de aula e sonhar com “A Mulemba de copa volumosa, como se fosse um telhado de plumas. Debaixo dela, constrói e destrói cidades inteiras, inventa diálogos com a árvore e esta ouvia tudo... tinha perdido a noção do tempo”. Com efeito, a escola era uma construção racional dos adultos em contraponto à espontaneidade das suas vivências infantis. Porque “Sou apenas uma criança"!, exclama. Na escola, um dia sonhou com um local cheio de árvores. Acordou ao pé de uma mangueira, “fartou-se de mangas, mas, agora sim, estava feliz junto de uma nova amiga”. 
    Porém a menina cresce, estuda e aprende naquele novo mundo dos adultos em que “tudo era uma obrigação”, levando-a “a deixar de brincar, de rir, de sonhar”. Mas paulatinamente descobre que, sem esquecer A Mulemba, nova amiga surge, porque a vida assim proporcionou, e então “os dias passaram a ser mais alegres e azuis”. 
   Depois de Angola e do Brasil, até 1975, vem a vez da Figueira, onde finalmente se instala. Aqui tem “um cato para cuidar, para amar”, . 
   O livrinho contém uma mensagem ecológica forte em torno de um dos temas recorrentes, maiores do nosso tempo, com um objetivo didático-pedagógico: “As árvores e os animais também ficam tristes...”; o cato, apesar de pequenino, “precisa de ti, do teu carinho, das tuas atenções”; e generalizando, “grandes ou pequenos todos gostam de amor...” 
  Dada a sua formação académica, com licenciatura em Línguas e Literaturas Modernas (Português, Francês), e longa experiência docente no ensino secundário, hoje aposentada da Escola Doutor Joaquim de Carvalho (Figueira da Foz), Maria Luisete Souto Cardoso Baptista estende a sua apurada sensibilidade estética ao âmbito da arte pictórica, numa bem conseguida urdidura entre a palavra escrita e a pintura. Este interessante entrosamento constitui uma mais-valia das obras desta escritora, com créditos firmados, pois proporciona sinestesias que seduzem o leitor até o fim da narrativa. Formalmente A Mulemba é um livrinho de texto e ilustrações cuidadosamente trabalhados ao longo das doze partes ou painéis de múltiplas valências. A combinação pictórica dos castanhos, verdes, azuis, vermelhos, cinzentos, amarelos ..., apresenta tonalidades de uma suavidade que dir-se-ia etérea. Por outro lado, o papel que serve de suporte ao texto e ilustrações é de boa qualidade. 
    Aquela menina sonhadora, contestatária da escola, que viveu em Angola e Brasil, "personagem" principal da narrativa, por fim fixou-se na Figueira da Foz - a  nova representação de A Mulemba. É, obviamente, uma bonita estória com ingredientes e contornos autobiográficos. (Pé de Página Editores, Março 2005).

quarta-feira, 18 de julho de 2012

UM HOMEM, UMA VIDA, UM DESTINO


Não fui um íntimo ou áulico do poeta Afonso Duarte. Nem sequer tive o prazer de lhe apertar a mão, mas ainda o conheci no café Arcádia, da baixa de Coimbra, nos últimos dois anos da sua vida. Evocar o autor de “Os 7 Poemas Líricos”, é um ato de justiça pelo testemunho que deixou de saúde intelectual, de verticalidade moral e de cidadão exemplar. Vou debruçar-me um pouco sobre a vida deste homem cuja existência foi marcada pelo ferrete da adversidade e, por isso mesmo, ele foi o que foi. A sua obra poética é a expressão da sua vida. Incentivado pelos amigos, escreveu, proferiu conferências, exigiu a intervenção de intelectuais nos problemas fundamentais e viveu com a frescura de quem está sempre a começar. 

Desta forma se exprimiu: “O nosso mal é não ver / Que somos tão diferentes / Por cada tempo que morre: / Não se acaba de nascer.”(1) Mas o poeta do Baixo Mondego compartilhou do destino de todos aqueles que nasceram para beber até à última gota o travo amargo da vida. Aos trinta e poucos anos de idade foi vítima de grave doença (paraplegia), então alferes miliciano no forte de Caxias, Lisboa. Mas, apesar de tudo, amou a vida e nunca deixou de a cantar. Como nestes bonitos e comovedores versos: “Mostra-me a vida, ao choro que eu derramo, / Que é apenas drama o que o que ela me tem feito! / E, santíssimo, é Ela que eu mais amo.”(2) 
Com efeito, o afastamento compulsivo imposto, em 1932, à notável obra pedagógica e etnográfica que entusiasticamente vinha realizando na Escola Normal Primária de Coimbra, marcou-o profundamente. Depois de uma luta persistente de sete anos contra “homens sem rosto”, passou à situação de aposentado em 1939. Na realidade, motivos tinha o poeta para se lançar nos braços de uma qualquer panaceia, ou se fechar na contemplação das próprias dores. Mas não é isso que acontece. Ele, o “—Príncipe que fugiu a ser escravo —”(3), como se definiu, assume uma postura mordaz contra os que se bandearam para o campo adverso quando os ventos mudaram: “Não pronuncio nomes detestáveis / E dou com eles às vezes nos jornais; / E nem sequer lhes chamo miseráveis / E foram-no demais .”(4)
Afonso Duarte foi, pois, um daqueles causticados por múltiplas forças adversas. A alguém que estava tratando do seu caso [contra a suspensão forçada da atividade docente], o poeta teve um desabafo bem revelador da sua postura cívica e ética: “O meu caso é bem digno de interessar um amigo, pois não é só um caso único de injustiça ao funcionário do Estado; é também um caso de ingratidão sem nome ao pobre do homem que dentro do magistério oficial criou uma obra que passou as fronteiras e toda ela feita de um grande amor à nossa Terra.”(5) São ainda dele estas palavras dramáticas: “Fiquei ao abandono: sem vencimento... e, como aposentado, em situação de inferioridade flagrante perante os outros funcionários aposentados pela lei que me aplicaram.”(6) Porém não se acomodou e respondeu sempre, aceitando o desafio com um estoicismo exemplar. E a consciência do valor próprio e o espírito cívico de bem servir estão patentes neste trecho modelar: “Mas que bem servi o meu País, é o que ninguém poderá negar-me... Receio não tenho algum que me acusem de menos nacionalista, porque ninguém terá mostrado com melhor sentido, em treze anos de persistente esforço, que “as coisas de Portugal todas têm grande valor — como deixou dito Mestre Gil Vicente — para todos os campos da minha atividade e, principalmente, no campo educativo.”(7) 
Afonso Duarte empenhou-se também nos problemas e necessidades da sua terra - freguesia de Ereira. Só dois exemplos. 
Fez parte da comissão administrativa responsável pela criação da escola primária local (hoje desativada e em estado de abandono, sem destino assegurado) e chegou mesmo a afirmar que teve sérias arrelias com os empreiteiros. E aquando das comemorações da elevação da Ereira a freguesia (Abril de 1985), Joaquim Simões Cantante, um ereirense empenhadíssimo nas questões da sua terra, referiu as palavras ditas pelo poeta em 1930, a propósito de uma oportunidade gorada para a emancipação da Ereira . Nesta ocorrência A. Duarte desabafou: “Perdemos a batalha mas não perdemos a guerra. Temos de continuar a lutar!”... E concluiu Simões Cantante: “Passados 55 anos cumpriu-se o sonho de todos nós e também a profecia de Afonso Duarte”.
Mas, apesar do drama que foi a sua vida, o poeta teve a sorte de encontrar bons amigos com quem desabafava as suas mágoas. A poetisa brasileira Cecília Meireles (1901-1964) foi uma das personalidades de relevo com quem manteve um contacto privilegiado sobre interesses culturais recíprocos. Exprimiu-se a grande escritora desta forma muito bonita: “ O dom do poeta é olhar com enternecimento até para a infelicidade. E tornar-se, por fim, motivo de admiração na maior dor.”(8) No fim da vida, o autor de “Post -Scriptum de um Combatente” bem podia dizer com Alfred Musset (1810-1857): “O homem é um aprendiz e a dor o seu mestre”.
Afonso Duarte foi um espírito humaníssimo que perante a vida e os homens soube assumir uma atitude humilde e densa de sabedoria, como mostram estas duas sentenças: “Sê sóbrio, / E sorri das tonturas dos medíocres / Com dó e piedade. / Não descubras que existes: / Tem caridade.”(9) Ou ainda estoutra: “Darmos as mãos uns aos outros, / É o preço da nossa cruz. / É esta lei tão humana, / A própria lei de Jesus.”(10) 
E foi assim Afonso Duarte — UM HOMEM, UMA VIDA, UM DESTINO.


João Figueira
Notas
1 ”Lápides e outros poemas” (1956-1957). Iniciativas Editoriais, Lisboa
2 Naufrágio, in “Ritual do Amor”
3 Soneto de Ereira, in “Ossadas”
4 Epigramas e Sátiras, in “O Anjo da Morte e Outros Poemas”
5 Anotações do poeta
6 Idem, Ibidem
7 Idem, Ibidem
8 Cecília Meireles, correspondência
9 Sentença, in “Ossadas”
10 Quadrinha na pastinha das crianças da Casa de Infância Dr. Elísio de Moura - Queima das Fitas

quinta-feira, 31 de maio de 2012

A CRIANÇA

        No dia primeiro do mês de junho cumpre-se mais um Dia Mundial da Criança. Este evento que serve todos os anos de pretexto para iniciativas de vária índole, desencadeadas por entidades públicas ou particulares, constitui um tempo forte, não só para o entretenimento e atividades lúdicas, mas também para uma tomada de maior consciencialização dos inúmeros e vastíssimos problemas que afetam as crianças das sociedades do nosso tempo. 
Constituindo um dos pilares do chamado "triângulo familiar", a criança continua a ser mal amada, diria mesmo, por vezes, objeto de atos infamantes com todo o peso de repulsa que o termo comporta. E não se pense que estou a enfatizar ou a dramatizar esta questão porque basta alguma atenção à comunicação social para nos darmos conta da dimensão dos problemas. 
Apesar dos grandes progressos científicos alcançados acerca do conhecimento da criança no decurso do séc. xx, paradoxalmente a dignidade, consubstanciada nos "Direitos da Criança", continua ainda distante de ser cumprida na praxis do dia a dia. Claro que esta situação acontece não por culpa da criança mas do adulto, consciente ou não das consequências dos seus atos. Não se ignora que a permissividade dos comportamentos e o subjetivismo relativista que se projetam nos critérios de valor atuantes no tecido sociocultural de largas camadas da população, não são de molde a minorar a extensão e a gravidade dos problemas.
 Porém, e em contraponto, há também esforços louváveis e iniciativas positivas, promissoras, públicas e privadas que acalentam as nossas esperanças no futuro. A Humanidade continua a enfrentar imensos desafios, e estes - a promoção e a dignidade da criança - são, seguramente, alguns deles. Porém, perde-se na memória dos tempos, eu diria mesmo que faz parte do património da Humanidade a condição de inocência tão celebrada ao longo da História, que fez da criança uma protagonista privilegiada. Muitos artistas, escritores, nomeadamente os poetas, têm enaltecido o fabuloso mundo da espontaneidade, simplicidade e inocência infantis.
Em suma: não pode ignorar-se, por ser particularmente interessante e elucidativo, que os progressos da Psicologia, na área da satisfação das necessidades e correspondentes motivações humanas, tenham conduzido à descoberta de uma certa correlação entre a satisfação de necessidades de nível elevado e a manifestação de certas caraterísticas e valores. 
Assim, as pessoas que ascendem ao máximo desenvolvimento possível do seu potencial para a perfeição e a criatividade apresentam algumas características, tais como, a espontaneidade, o sentido ético e de valores; o gosto e a capacidade de apreciação da natureza, da arte, e também das crianças... Dir-se-ia que aquela criança que reside bem no fundo de cada um de nós acaba de alguma forma por revelar-se, quando estão reunidas as condições de auto-atualização das potencialidades de uma pessoa.
João Figueira

sábado, 19 de maio de 2012

UM POETA MAIOR

                                                  
         No Centenário do “Cancioneiro das Pedras” e da publicação de “A Rajada” (1912)
. Afonso Duarte refere o “Casal do Sol-Posto, lugar da Terra de Ereira, sob o domínio do Castelo de Monte-Mor-Velho” (1), como localidade do seu nascimento, 1884/01/01, e faleceu em Coimbra,1958/03/05, na clínica do dr. Bacalhau. A sua atividade decorre na 1.ª parte do séc. XX. Foi poeta, prosador, professor, educador, pedagogista e etnógrafo. Para a posteridade deixou um pedido: — ser “recordado como poeta”. O pai opinava que, “fora da lavoura, só engenheiro ou tropa”. O rapaz apenas foi tropa ocasionalmente e de engenheiro nenhum interesse. Depois da escola primária, em Alfarelos, transita para o Colégio Mondego, Coimbra . Passados 4 anos matricula-se no 4.º ano do Liceu de José Falcão, Coimbra, 1902. Já nesta altura o gosto pelas letras manifesta-se, a ponto de Vitorino Nemésio dizer que “todo ele respirava literatura (2).
. Em 1909 frequenta o curso de Ciências Físico-Naturais, da Faculdade de Filosofia, concluindo o bacharelato em 1913, na Faculdade de Ciências, curso de Físico-Químicas da Universidade de Coimbra, entretanto reformada pouco antes.
Escrever sobre Afonso Duarte não é tarefa fácil, dada a complexidade e profundidade da sua obra. A sua poesia abarca uma vastidão de questões e temas, alguns dos quais a cinza do tempo não apagou. O poeta renova-se no fluir do tempo, dando-nos conta da sua experiência vivida, numa perspetiva de autenticidade que o leva a sentenciar: — “Não valem aparências, / Senão o coração inscrito / No que escreve / Fruto de experiências” (3).

. Os seus versos são um vasto repositório e/ou espelho do mundo dos seus sentimentos, emoções, paixões, ideias e valores. Sempre atento às novidades literárias e acontecimentos da História da 1.ª parte do séc. XX, Afonso Duarte é de sua índole um espetador atento e ativo, qual periscópio indagador dos pequenos detalhes do acontecer quotidiano, segundo uma orientação estética-literária que lhe é própria: — “Vem como artista, / Sem outra desigualdade. / Põe nas palavras o barro / Da tua humanidade” (4).

. Numa tentativa de organização formal da sua produção poética, podemos considerar três fases de desenvolvimento. Com efeito, no volver dos anos, assiste-se a uma renovação temática e inovação na construção do verso. O filão lírico voltado para a Natureza é dominante na 1.ª fase, até à publicação da coletânea “Os 7 Poemas Líricos” (1929), publicada nas edições Presença. Neste volume, Afonso Duarte reedita as publicações anteriores, reorganizando-as, eliminando alguns poemas e introduzindo outras.  Neste volume, o autor reedita títulos publicados antes, reorganizando-os,  eliminando outros. O 1.º livro, cuja publicação conta com o apoio burocrático do amigo figueirense, João de Barros, vem a lume em 1912 sob o nome “Cancioneiro das Pedras” que reune poesias suas dispersas por revistas da época, entre 1906-1910. Seguem-se “Tragédia do Sol-Posto”,1914; “Rapsódia do Sol-Nado seguida do “Ritual do Amor” (1916); “Romanceiro das Águas” (incluído inicialmente no Cancioneiro...); e os poemetos: “Alegoria da Tarde” e “Episódio das Sombras”. O pendor lírico de "Os  7 Poemas..." mantem-se nas fases seguintes. Também em 1912 o poeta assume a direção literária de “A Rajada” e Correia Dias a direção artística—revista de crítica, artes e letras—, sendo grande parte dos colaboradores afetos ao movimento saudosista, com publicações em “A Águia”— revista ilustrada de literatura e crítica—, porta-voz da “Renascença Portuguesa”, movimento cívico e cultural, onde pontificava o ideólogo do saudosismo, Teixeira de Pascoaes. 
. De 1912 para cá—refere Vitorino Nemésio—,”não houve movimento literário algum com raiz ou eco em Coimbra, que não tenha alguma coisa que ver com Afonso Duarte e os seus cafés” (5), Central ou Arcádia, onde à sua mesa montou uma espécie de cátedra que durante décadas acolheu antigos alunos, amigos e jovens estudantes universitários que ensaiavam os primeiros passos nas lides literárias e/ou pretendiam uma orientação na conduta cívica e saber pedagógico. Na conjuntura política pós-revolução republicana de 5 de Outubro de 1910, Pascoaes e outros assumem o projeto de regeneração do país em torno da estética literária de um  saudosismo nacionalista propenso ao culto da tradição, do misticismo panteísta e do génio da raça. Para o Festival do Poeta, Coimbra 1951, Afonso Duarte escreveu esta  “Saudação a Pascoaes / ...À direita dos Deuses terás palma / Nos aléns do Arquipélago celeste: / Pois às  velhinhas coisas tu descestes, / No que tocastes foi alma” (6). E “In Memoriam” de Teixeira de Pascoaes : “...Cantando o seu drama lírico / Lá no Marão entre fráguas, / Ele era ao vento do Espirito / Como a pomba sobre as águas” (7).
. Neste âmbito, o meio familiar de Afonso Duarte também contou. Do tio-padrinho, José Maria Fernandes, professor do ensino primário, dizia que "lhe ensinou a ler e rezava os Lusíadas”. Assim a sensibilidade estética, as ideias e valores do sobrinho-afilhado foram-se afinando e interiorizando. No soneto “Génio da Raça” ( in "Romanceiro...") escreve: — “Minha raça é de herois, navegantes: /.../ Eu sou dum Povo adamastor de Lendas: / Sangue lusíada a cantar nas veias, / Fui Sagres afoitando os marinheiros”; e em “Diálogo com a minha Terra”:  “...Lusíadas do povo ando a escrevê-los...”        (ibidem ). É pois uma ideologia de feição neorromântica e metafísica, cuja doutrina integra as dimensões política, filosófica e religiosa, de cariz nacionalista. 
. Para Fernando Pessoa, a relação de Pascoaes com a Natureza é como uma “espiritualização da matéria”. Com o movimento modernista enquadrado na "Revista Orfeu" (1915), o ciclo do saudosismo lusitanista, sob a égide do escritor de Marânus, perde influência. Por seu turno, Vitorino Nemésio precisa a cumplicidade entre Duarte e o poeta do Marão nos termos seguintes: “Enquanto Pascoaes é profeta do mistério humano refletido nos seres e nas coisas, e poeta das sínteses metafísicas, de grandes massas elegíacas rolantes e monótonas, Duarte é poeta da graça e do concreto, da vida dos campos, do sentido que tem o perfil bem delineado das coisas. Mas é isso com uma expressão de raiz tradicional, tirada exclusivamente do nosso génio lírico, do seu abecedário desde Camões a João de Deus (...). A esse lirismo caseiro, mas do puro e do alto, deu Afonso Duarte uma volta sua, tanto na inspiração como na forma...” (8). Porém, este mundo rural de que Afonso Duarte é memória e porta-voz , hoje não existe. De qualquer forma, todo esse inolvidável passado ainda se mantém na memória reminiscente da atual geração dos mais idosos, constituindo um património cultural que faz a identidade da "terra de meus que Deus mantenha", a "Ilha de Ereira", a "Guernesey  dorida", na sugestiva expressão do Poeta. 

. A breve trecho, depois de cantar a terra e o sol, o poeta vai iniciar uma aventura poética transformadora e purificadora que inaugura o período da maturidade (2.ª fase) com as obras “Ossadas”(1947) e “Post-Scriptum de um Combatente”(1949), publicações estas redigidas nos anos 30 e 40, na vigência da PresençaFolha de arte e crítica — publicada em Coimbra, 1927, dirigida e editada por João Gaspar Simões, José Régio e Branquinho da Fonseca, na qual Afonso Duarte publicou os artigos "Para uma Nova Posição Estética. Subsídios de Arte Popular Portuguesa” (1928) e “Os Contos do Natal e o Sentimento Religioso Popular”(1936). [Sobre a mesma temática publica “Um Esquema do Cancioneiro Popular Português”, Seara Nova, 1948]. Porém, surge o "Novo Cancioneiro" (1941-1944)— coletânea de poesias de um grupo afeto à estética neorrealista (Carlos Oliveira, Joaquim Namorado, João José Cochofel, Fernando Namora, Mário Dionísio, Manuel da Fonseca, entre outros). Nesta altura já Afonso Duarte era uma figura tutelar no contexto cultural conimbricense, mau grado ter sido afastado da docência oficial, em 1932. Nesta 2.ª fase, a publicação em 1947 do livro "Ossadas", que significa redução do verso ao essencial, marca o início de nova orientação estética da poesia. Como, entre outras, as seguintes: "Poeta / Prende-te uma flor / Porque te não inquieta? / — Poisada borboleta, / Só perfume e cor. // Mas um dia a dor, / Outro dia o amor, / Voa a borboleta! // — Poeta: // É a flor” (9); ou em — Carme—Uma só rosa vale o roseiral. / Porque me escreves longo o teu poema? / O inspirado instante sem igual / Acaso não será a hora suprema?” (10). A preceder a fase de redondilhas, inclui na "Obra Poética" (ed.1956) "O Anjo da Morte e Outros Poemas", por determinação expressa do Autor, e "Lápides e outros poemas (1956 - 1957)", obra de publicação póstuma.
. Por outro lado, partindo do pressuposto da existência de uma analogia entre o sincretismo do desenho livre e espontâneo da criança e os esquematismos dos motivos decorativos da  arte popular, Afonso Duarte empreendeu uma interessante e fecunda aventura poética e psicopedagógica que se materializou em “Desenhos animistas de uma criança de 7 anos” (1933) e, por conseguinte, com influxo na desestruturação do verso —, um legado que Afonso Duarte deixou à poesia do seu tempo. Para tal, contribuiu o considerável volume de espécimes de etnografia artística, em parte recolhidos do folclore português pelos seus alunos, o que permitiu uma sábia utilização pedagógica na Escola Normal Primária de Coimbra, no sentido de uma intuição de Arte. [Na “Carta Metodológica” (1925) que acompanhou a mostra de desenhos decorativos inspirados na cerâmica popular regional na exposição de Locarno, 1927 , escreveu: “Apesar de muitos serem os meios por nós ensaiados no ensino do desenho decorativo, nenhum outro despertou tanto interesse nos educandos como o estudo dos desenhos folclóricos”. Em 1925 deu à estampa “O Desenho na Escola — Barros de Coimbra”. Tipografia “Lumen”, Coimbra].
. Em síntese, a poesia de Afonso Duarte transmuda-se na fala da origem, na voz do princípio, na busca da inocência... Assim, o que carateriza esta nova estética poética é o verso curto, conciso: “Poemas breves / como instante da flor / que abriu para morrer” (11).

. Na 3.ª fase da “Obra Poética”(trilogia das redondilhas), o poeta inspira-se em autores clássicos Virgílio, Ovídio..., na "aurea mediocritas" horaciana, na conceção estoica da vida, na nostalgia decorrente da perda da inocência e da felicidade: — “Inocência de menino, / Quem a dera em minha mão: / Oh! como há de ser feliz / A rosa ainda em botão!” (12). E no mesmo tom: “Só a criança conhece a Eternidade / Que é inocência do desconhecido. / E o que me dá saudade / É havê-la em mim perdido”... (13)— temas estes já enunciados em "Ossadas".
 . Fiel a uma atitude romântica, assume-se vate que arrisca dizer o que virá. É agora a aventura do homem em direção ao cosmos; daí o vaticínio de um novo tempo:—”Ai vida da minha vida, / Cada um astro é sinal / Para nova partida /...” (14).
 . Em contraponto, um sentimento de desilusão:  “Ode SpútnikaVulneráveis satélites / Percorrem o espaço / Onde quis haver deuses! // E choro (Neptuno e Vénus, Mercúrio e Marte). Choro: / — O meu mundo infantil / Acabou hoje. /...” (15). Ou o sentido ético da vida:— “Europa de Jesus Cristo / Em cruz de pau e de pedra, / Mantém-te segura nisto: / Com o alheio ninguém medra /...” (16)... É o tempo histórico, complexo, de desorientação geral em que se encontra a Humanidade, face às contradições, esperanças e desesperos, provocados pela catástrofe humana que foi a 2.ª Guerra mundial (1939-45). 
.Canto de Babilónia”(1952 ) é de certo modo a continuação do livro anterior, sendo comum a ambos a forma oracular, metafórica e expressiva:—”Ao que sei dos Tempos de hoje / (Ai! Valha-me o espaço etéreo!) / Um dia a Terra nos foge / Oca de sangue e minério! / Eia! sus! Em linha reta, / Depressa! E, outro planeta, / Ao que sei dos Tempos de hoje”. Na crítica social lembra Sá de Miranda e na critica à perda dos valores morais,  Camões em “Sôbolos rios que vão”.
. “Canto de Morte e Amor” (1952 ). Neste livro o poeta confronta-se com o eterno problema da vida e da morte. Deste modo se exprime: “Problema da morte? Não: / Apenas só na medida / Em que dá mais coração / A quem se encontra na vida”. Porque para o poeta “O que levamos da terra / É o céu que possuímos: / Esperança das sepulturas”, dado que “morre a carne”, mas acredita noutra existência na qual “vive o espírito” que é “luz da carne”. Tudo isto intui o poeta a propósito da morte de pessoas que lhe eram próximas. Foi em torno desta experiência concreta, vivida, que o espírito de Afonso Duarte se abre para o mistério da morte e do amor. Daí esta bela mensagem: —”A graça feminina / Ainda mantém o mundo. / E secamente o digo, Poetas, / Se não cantais o amor.// Se não cantais em louvor / Da graça de uma ternura, / Que é a vida? Ai, amor, / A vida é uma amargura (17).
  
. Nos últimos anos de vida atormentava-o a falta de saúde. Coube a Carlos de Oliveira e João José Cochofel organizar a 1.ª edição da “Obra Poética” (1956) de Afonso Duarte. Ambos se confessam “dois dos discípulos mais modestos” e enaltecem-no com as seguintes palavras: “Mestre querido e raro: de versos, de saúde intelectual, de confiança no homem, de amor à terra, de rosas e cantigas—com grandeza bastante para não ter menosprezado nunca a juventude dos discípulos. Mestre Afonso Duarte”. E, em meados da década de cinquenta, este ilustre filho da Ereira e do concelho de Montemor-o-Velho foi declarado pelos seus pares o Maior Poeta Português vivo.
Obras de referência de/sobre Afonso Duarte: | - Obra Poética (Iniciativas Editoriais, Lisboa 1956); ||-Obra Poética (Guimarães Editores, Lisboa 1957); II|-Lápides e outros poemas (1956-1957) Iniciativas Editoriais, Lisboa 1960; |V- Obras Completas I - Obra Poética (Plátano, Lisboa 1974); V- Poesias de Afonso Duarte (Editorial Comunicação, Lisboa 1984) Maria Madalena Gonçalves; VI- Obra Poética I - Os 7 Poemas Líricos (Introdução José Pires Azevedo / Montemor-o-Velho: Casa Museu infante Dom Pedro, 2002 - 2003); VII -Obra Poética (Introdução... de José Carlos Seabra Pereira / Edição Crítica comemorativa do cinquentenário da morte do autor / Imprensa Nacional - Casa da moeda, Lisboa 2008) / Biblioteca de Autores Portugueses
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NOTAS
1 “Tragédia do Sol-Posto”
2 Revista Panorama, n.º 5, 3.ª série
3 Sentença, in “Post-Scriptum de Um Combatente”
4 Epígrafe, ibidem
5 Revista de Portugal, vol. II, 1939
6 “Post-Scriptum...”
7 O Anjo da Morte e Outros Poemas, Musa Familiar, 1952
8 Revista de Portugal...
9 ”Ossadas”
10 “Post-Scriptum...”
11Introdução a “Ossadas”
12 Inocência, in “Ossadas”
13...Extremis, in “O Anjo da Morte e Outros Poemas”
14Sibila”, 1950
15 Lápides e outros poemas, 1956-1957
16Sibila”,1950
17 Canto de Morte e Amor"

sábado, 10 de março de 2012

"DEU-ME O DESTINO EM BERÇO A MAIS FORMOSA ILHA"


"DEU-ME O DESTINO EM BERÇO A MAIS FORMOSA ILHA"(1)

O nosso Poeta, como se diz ainda hoje na Ereira, fez da sua Terra um grande tema poético: "Ilha de Ereira, ó Guernesey dorida, / Onde me exilo a esta sol do inverno, / Que irá no meu País? Que irá na Vida?"...(2)  E de forma mais enfática: " Canto o amor de meus campos e baldios, / Meu casal que é uma ilha aos quatro ventos."...,(3) "às audições do Atlântico", e onde ..."houve salinas quase à minha porta". (4)
Terra mítica, um lugar mágico, sob a proteção do medieval Castelo de Monte-Mor-Velho. Pequena em dimensão mas grande pela beleza do canto duartino, cujo estro poético de altíssima qualidade a projetou universalmente, como justamente referiu o nosso saudoso amigo, Joaquim Simões Cantante, ereirense de gema e representante da população na Homenagem Nacional prestada ao emérito conterrâneo, em Junho de 1956.
Afonso Duarte amava visceralmente a sua Aldeia. As fontes, os campos, o Sol, os milheirais, os feijoais, o granzoal de bico, as árvores, os frutos, as videiras, os goivos, as rosas, as andorinhas, os pardais, as gaivotas, a cegonha, o pato bravo, o coaxar de rãs... É a Natureza estuante de vida! Nada escapou ao seu sagaz espírito de penetrante finura, perscrutador das coisas simples e dos pequenos nadas da vida.
As vindimas, as uvas no balseiro, as medas loiras, o gado, as colheitas, o cereal nas eiras, o painel das gandarezas das mondas e das mulheres das sachas ao calor, os rostos saibrosos de cavadores do trabalho suado e praguejado. É o suor de sol a sol: "Enxada à terra, ó braços da pobreza".(5) Esta espantosa capacidade de admiração que devém culto da Natureza e de que faz eco a "Obra Poética", manifestou-se já em tenra idade. No fim da vida, o autor de "A morte da rola" recorda-se ainda dos primeiros versos que escreveu por volta dos 13 anos, no período intercalar de dois anos a seguir à instrução primária e a entrada no colégio Mondego, em Coimbra: "Ó  encantos  da Natureza / Se eu soubera dizer / Com exatidão e beleza / Era o bem que queria ter". (6) Mas, para o Poeta, nesta "Ilha dos Amores" tudo é animado e comunga de humanidade: "É o homem em tudo!.../ E de Árvores, de Pedras, e de Rios / Componho eu toda a minha humanidade". (7)
É esta mensagem de bucólica e franciscana ternura pelas coisas simples e pequenos nadas que faz de Afonso Duarte um dos mais representativos poetas da primeira parte do séc. XX, na opinião dos críticos e dos escritores seus contemporâneos. E porque não (?!) considerá-lo também hoje um ecologista avant la lettre...

"Ilha de Ereira, ó Guernesey dorida"...
Porquê esta estranha referência a Guernesey? Certamente porque na sua Aldeia, durante três ou quatro meses no ano, as cheias reduziam-na à condição de ilha, tornando-a semelhante àquela. É a sensibilidade estética do Poeta a falar mais alto, pois, como ele admiravelmente disse, "Na alma dum poeta, vê-se nela o céu".(8) Parece-nos que a evocação da ilha anglo-normanda do Canal da Mancha (de 78 Km2), para comparação com a Ilha de Ereira, (9)  é intencional. Guernesey serviu de guarida a Victor Hugo que entre os anos 50 a 70 do séc. XIX aí se exilou, vítima das vicissitudes politicossociais da França nesse período. A simpatia dos literatos portugueses pelo escritor francês foi notória. Entre nós beberam na obra do autor de "Os Miseráveis" a Geração de 70, nomeadamente o poeta-filósofo Antero de Quental e Eça de Queirós, bem como Guerra Junqueiro e Gomes Leal.
O grande lírico francês e figura proeminente da literatura europeia abordou temas caros ao espírito de A. Duarte - a infância, o amor, a natureza... -, e pugnou pelos ideais humanitaristas e republicanos. Assim, é natural que o Poeta do Baixo Mondego se considerasse próximo estética e ideologicamente do notável escritor, porque também Afonso Duarte sonhava com "leis sociais que deem ao homem confiança no homem".(10)
"Onde me exilo a este sol de inverno"...
Trata-se de um retiro voluntário que se adequa bem ao espírito independente do Poeta: "Terra, Mar e Céus! / Comigo e com Deus!"- versos que integram um dos seus ex-libris. E solitário: " Tenho perante a vida o destino imposto: / Viver, mas no bem longe! / Da montanha do amor erguer aos céus meu rosto, / Entre os homens ser monge"... (11)   
A respeito desta condição da Terra de Ereira, rodeada de campos alagadiços e encastoada entre dois braços do rio que parecem afagar esta Princesa do Mondego em doce aconchego, isolada vários meses pelas cheias, o Poeta refere-se de forma impressiva: ..."As cheias vindo às casas! / Tudo afoga em dilúvio, ervilhal e giesta, / Do próprio lar as brasas! // O vento sopra ao desamparo, o vento grita, / Como um louco varrido! / E água e água em caudal, sob a abóbada infinita, / A aldeia é um gemido. // ... A água é como loba!...(12)  
E pensar a gente, até há pouco, que este evento era assunto de um passado longínquo da memória duartina! ... Porém, a incúria dos homens e os caprichos da Natureza vieram mostrar ao país e ao mundo, em finais de Janeiro de 2001, o acerto e a atualidade das palavras da Sibila da Ereira.
Mau grado tais limitações, esta "aldeia à beira-mar" deu-lhe a vivência de uma ocupação laboral ambivalente - a de lavrador e de pescador: "Meio ano a lavoirar / Outro meio ao anzol! ".(13)
E na heráldica desta terra mondeguina ficaram para sempre gravadas as palavras do Poeta: "O arado e a vela latina devem formar o brasão da Ereira".(14)
"Que irá no meu País? Que irá na Vida?"...
A despeito do retiro / exílio da Ereira, não se pense que o autor de "Soneto de Ereira" fosse capaz de cortar as amarras com o mundo. É ele que o diz: "Para fugir de casa / Tenho um barco no rio".(15) E mais tarde, nos tempos negros da Segunda Guerra Mundial, o Poeta possuía na sua casa do monte um rádio alimentado a energia eólica, onde reunia familiares e um ou outro conterrâneo para saberem novas da guerra. Era, uma vez mais, a sua preocupação pelo homem e o seu destino.
    
 João Figueira
NOTAS

1 "Terras do Infantado", in Romanceiro das Águas.
2 "Diálogo com a Minha Terra", Ibidem.
3 "Ilha dos Amores", Ibidem.
4 "Monte-mor", in Ossadas.
5 "Em Louvor do Sol", in Rapsódia do Sol-Nado.
6 Afonso Duarte, in Carta a Carlos de Oliveira, s.d..
7 "Ilha dos Amores", ibidem
8 "Carta a um "Amor", in Ritual do Amor.
Formando uma ilha, em meia lua, com uma superfície de uns 6 km2. É na borda de um pequeno monte - em forma de pirâmide truncada, com uns 20 metros de altitude,..., na parte mais cimeira - que assenta esta pequena aldeia, onde se aglomera a mais densa população rural do País". Afonso Duarte, in De Terras de Montemor (Diário de Coimbra, 11-7-1936). 
 10 "Afonso Duarte, in Carta a António Sérgio, s.d..
11 "Terras do Infantado", Idem.
12 "Idem", IdemO significado simbólico de "loba" engloba " tanto um aspeto satânico associado à ideia de aniquilamento do mundo, como um aspeto benéfico, regenerador e fecundo. A mesma água que aterrorizava o povoado e destroi os campos, inundando-os de areias, carreia os nateiros que fertilizam os solos e consagram a fama dos campos do Mondego". Apud Irene Maria Vaquinhas, in Violência, Justiça e Sociedade Rural, I. Cit. de Dina de Sousa, in Ereira - Poesia e Vida. Ed.: Grupo Folclórico A. C. D. S. da Ereira.
13"Búzio do Mar", in Romanceiro das Águas
14Afonso Duarte, in Diário de Coimbra, 11 Julho 1936.
15 "Aldeia", in Ossadas.
Ereira, Abril de 2004