quarta-feira, 23 de março de 2011

A Minha Lembrança do Professor Doutor Joaquim de Carvalho

Não vou ocupar-me da vida e obra do ilustre Professor da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra nos domínios do Magistério e da Cultura Portuguesa, nomeadamente o pensamento filosófico tão do seu agrado. Nem do seu posicionamento político, face às vicissitudes e convulsões por que passaram o País e o Mundo na primeira parte do séc. XX.
Gostaria, antes, de sublinhar que Joaquim de Carvalho (1882-1958) não deixa de constituir ainda hoje um verdadeiro paradigma intelectual e moral para as novas gerações com responsabilidades futuras. Efetivamente este vulto figueirense foi um luminar de primeira grandeza da inteligência portuguesa do século.
AS RAZÕES DE UMA OPÇÃO
No dealbar da década de cinquenta, Joaquim de Carvalho já havia atingido os cumes da notoriedade junto dos seus pares de aquém e além fronteiras. Mas foi, sem dúvida, com a jornada cultural por terras do Brasil, em cinquenta e três, que a carreira universitária do nosso Pensador — sempre associada à investigação e à divulgação da Cultura Portuguesa e não só —, chegou ao zénite.
Ele próprio vibrou entusiasticamente com o acolhimento que lhe proporcionaram os nossos irmãos brasileiros na sua passagem pelas longínquas paragens de Terras de Vera Cruz. Em confidência ao seu amigo Dr. João de Barros (1881- 1960), outro ilustre figueirense, exprimiu-se nos termos seguintes: “O Brasil ficou gravado no meu coração”. Se bem me lembro, foi por essa altura que ouvi falar pela primeira vez no devoto estudioso de Bento de Espinosa, filósofo holandês do séc. XVII, de ascendência judaico-portuguesa. Nesse tempo, andava eu pelos bancos da escola secundária, no Funchal. O meu professor de História, dr. Sousa e Freitas, numa recordação dos seus tempos de estudante, pronunciou o nome do Professor de Filosofia de Coimbra, Joaquim de Carvalho, com admiração. Pelo teor da conversa suponho que tenha estudado na Universidade de Coimbra.
Passado algum tempo, concluído o liceu, eu tinha que optar: matricular-me em Lisboa ou Coimbra. E, com efeito, não era nada fácil a escolha. Lisboa sempre era a capital de Portugal e cabeça do Império, o que, para a generalidade da mocidade mais escolarizada da Ilha da Madeira, pesava na decisão. Nesse tempo era voz corrente: “Quem não viu Lisboa não viu coisa boa!”
Por outro lado, Coimbra era uma tentação sedutora...cidade dos doutores, dos emblemáticos fados e guitarradas, das lendárias tradições académicas... Vista da minha Ilha, Coimbra era uma legenda plena de magia!
Este vivo sentimento reforçou-se no meu espírito com o estudo na escola secundária da disciplina de Literatura Portuguesa, nomeadamente das obras de Rodrigues Lapa, Hernâni Cidade, Fidelino de Figueiredo e outros, sob a docência do dr. Cardeal Nunes. Então convenci-me que, nada de verdadeiramente significativo, no plano cultural, ocorreu na Pátria Portuguesa ao longo dos sécs., sem que estivesse relacionado direta ou indiretamente com a Lusa Atenas. Foi, pois, neste contexto que teve eco no meu íntimo o nome do Professor Joaquim de Carvalho, Mestre prestigiado. Julgo que os factos e circunstâncias expostos propiciaram um clima favorável à minha opção por Coimbra.
O CONTACTO COM O PROFESSOR
No ano letivo de 1957/58 encontrava-me a cumprir o serviço militar obrigatório e , por sinal, colocado no Regimento de Infantaria nº 12, de Coimbra. Paralelamente, e sempre que possível, frequentava as aulas do 3.º ano da Licenciarura em Ciências Histórico-Filosóficas. O Doutor Joaquim de Carvalho, lecionava, então, a cadeira de História da Filosofia Moderna e Contemporânea, e História da Educação - esta do curso de Ciências Pedagógicas.
Apesar de não ter podido assegurar a lecionação completa desse ano, dada a progressão da doença grave que vitimá-lo-ia em Outubro, foi o bastante para conservar a grata lembrança do Professor competentíssimo e a vivência do Mestre humaníssimo.
No plano das relações pessoais sensibilizou-me o contacto fácil, espontâneo e afável.
Lembro-me de em determinado dia, quando abordava a Vida e Obra do filósofo francês René Descartes (1596-1650), concretamente a sua participação na Guerra dos Trinta Anos e, dada a circunstância de me encontrar fardado, Joaquim de Carvalho aproveitou este facto para me interpelar e tecer considerações sobre a vida militar do autor do “Discurso do Método”. Também algumas vezes, como era seu hábito, encontrava-o a passear no átrio da Faculdade de Letras e espontaneamente se me dirigir. Creio que pelo simples prazer de conversar e apreciar o convívio dos seus alunos.
Falava-lhe da Madeira - a terra e as gentes; o Professor discorria serenamente sobre a sua viagem por via marítima ao Brasil, com escala no Funchal. Recordo-me bem de, no andar da conversa, ter estabelecido uma certa analogia entre a fisionomia paisagística do Funchal e a Riviera Francesa. A diferença estava - disse o Professor - na maior presença da intervenção do homem na região mediterrânea, também conhecida por Costa Azul. Depois foi o desenvolvimento da doença ... e a morte inevitável!
Conhecido que foi na cidade de Coimbra o desenlace fatal, dirigi-me à Clínica de Santa Isabel, de seu filho dr. Manuel, na Rua dos Combatentes, onde me recolhi por instantes diante do seu ataúde envolto pelas bandeiras do Brasil e de Portugal. Pelo meu espírito ecoavam ainda as lições do Sage e nele ficou a gostosa e grata lembrança de uns momentos de conversa extra-aulas que revelaram o outro lado, também importante, do Professor — a dimensão humana de Joaquim de Carvalho. Estava consumada a trajetória terrena do ilustre Catedrático da FLUC, mas permanece na memória dos seus alunos e amigos, e no legado cultural inestimável que transmitiu à posteridade.
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Afirmo com satisfação e orgulho que foi um privilégio, que muito prezo, tê-lo como Professor e vivenciado a sua proximidade enquanto seu aluno, embora um tanto rápida e acidental. Com efeito, trata-se de um Homem que profundamente devassou os escaninhos da “Alma” Portuguesa e entusiasticamente soube defender em inúmeras intervenções públicas no País e no estrangeiro os nossos valores culturais, convencido desde 1916, que “o Génio Nacional, como unidade una e livre, se devia refletir na Filosofia”. O seu legado de erudito e investigador probo continuará, por certo, uma referência obrigatória para todos os exigentes estudiosos da Cultura Portuguesa.
Por isso, a atribuição do seu nome à minha Escola significou um ato acertado e uma homenagem justíssima ao Cidadão exemplar, ao sábio Professor, ao Historiador probo e ao Filósofo de espírito largo e verrumante. Pela qualidade e amplitude da obra realizada, nobilitou a sua Terra Natal e a Nação Portuguesa.
[in Sinal, n.1. Publicação da Escola Dr. Joaquim de Carvalho]

João Figueira  

sexta-feira, 18 de março de 2011

Lembrando o 20 de Fevereiro 2010





MADEIRA, MINHA TERRA SOFRIDA Pesada angústia foi ver, mesmo a distância, o que se passou naquela fatídica noite de 20 de Fevereiro. Dir-se-ia que os poderosos elementos da Natureza se congregaram para, em poucas e imprevistas horas de fúria, provocarem uma pavorosa devastação de que não tenho memória na minha já longa vida. O trabalho da comunicação esteve no seu melhor, mostrando-nos de forma objectiva e assaz impressiva a dimensão da tragédia que se abateu sobre aquele pedaço de terra portuguesa que ganhou jus ao epíteto de “Pérola do Atlântico”.
Há mais de meio século que me fixei no Portugal continental. Porém foram inúmeras as viagens à terra natal com minha mulher e os filhos em tempo de veraneio ou nas quadras festivas do Natal ou da Páscoa. A chegada e a permanência na Ilha assumiu sempre foros de festa. Ele eram os banhos nas águas cristalinas e tépidas daquele mar; ele eram os apreciados passeios de automóvel por montanhas e lugares da minha terra, bem como os percursos pedonais por levadas e veredas. Enfim..., a degustação de alguns pratos típicos da culinária local. Da iniciativa e o bom gosto encarregava-se a família. Mas para além deste bem-estar psicofisiológico, há outros ingredientes predominantemente de ordem sentimental e emocional que povoam a minha memória e se intensificam com o passar dos anos, como se as recordações de outrora aflorassem à consciência tanto mais fácil quanto mais distantes no tempo. É este um gostoso regresso às origens que se consubstancia num sentimento de consciência saudosa.
Volto à inaudita devastação provocada pelas quebradas e enxurradas que desabaram pelas encostas da montanha. Pessoas, animais, haveres, materiais indiferenciados, muitas toneladas de pedras e imensa lama transformaram as principais e bonitas artérias do Funchal numa autêntica lixeira. Era um espectáculo arrepiante e deprimente nunca visto! Cheguei mesmo a temer pela sorte de algumas edificações emblemáticas do centro da cidade onde predomina um tipo de pedra basáltica, também conhecida por cantaria “rija”, originária da empresa de meu avô sediada no sítio de Covão, concelho de Câmara de Lobos. Meu pai e irmãos continuaram a obra do seu progenitor até à sua extinção nos anos setenta. Quando vou ao Funchal, quedo-me a venerar essas pedras que tanto me falam, e me contam estórias dos recuados tempos da minha mocidade e juventude. Felizmente, neste particular, nada aconteceu de grave, pese embora a proximidade de uma ameaça real, eminente.
Mas a tragédia também atingiu outras zonas da Ilha com o seu cortejo de destruição em perda de vidas e bens de elevada monta. Conservo na memória episódios da grande luta do madeirense pela sobrevivência, nomeadamente nos anos de profunda crise a seguir à Segunda Guerra Mundial. Mas essa tem sido tradicionalmente a sina do meu povo que, quer no torrão natal, quer na diáspora, tem sabido arrostar com toda a espécde adversidades. O exemplo mais evidente da Madeira rural, profunda, está nessa coragem e esforço continuados pela superação das limitações adversas, nessa gesta hercúlea de transformar a encosta da montanha em socalcos (“poios”, no vocabulário regional). Aqui a “fome de terra” assume a expressão de tal acuidade que julgo não ter paralelo em qualquer parte do país e não só. A título de uma singularidade exemplar, recordo uma plantação de bananeiras sensivelmente a meio da falésia do Cabo Girão (o 2.º maior cabo do mundo, 580 m. de altura) que, para mim, constitui uma dádiva da Natureza, espécie de réplica dos “jardins suspensos” da Babilónia, uma das sete maravilhas do Mundo Antigo. Na verdade, a par da paisagem urbana, densamente povoada, a Madeira apresenta outra face: a da admirável e dura realidade de uma autêntica epopeia rural.
foto de Maria de Fátima Silva


E concluo na firme convicção de que aquela terra dorida vai voltar ao que era. Com o trabalho árduo da sua população, o empenho das autoridades regionais, centrais e a solidariedade à escala nacional e internacional, a Madeira vai decididamente vencer a tragédia natural de que foi vítima, qual Fénix Renascida das fatídicas e medonhas nuvens vindas do Oceano. A força anímica ancorada na Fé de Nossa Senhora do Monte, cuja igreja fica sobranceira ao Funchal, e a proteção da milagrosa Imaculada Conceição, da destruída capela do Largo das Babosas (foto ao lado), constituem penhor de vitória final, acredita a gente da minha terra sofrida.