sábado, 10 de março de 2012

"DEU-ME O DESTINO EM BERÇO A MAIS FORMOSA ILHA"


"DEU-ME O DESTINO EM BERÇO A MAIS FORMOSA ILHA"(1)

O nosso Poeta, como se diz ainda hoje na Ereira, fez da sua Terra um grande tema poético: "Ilha de Ereira, ó Guernesey dorida, / Onde me exilo a esta sol do inverno, / Que irá no meu País? Que irá na Vida?"...(2)  E de forma mais enfática: " Canto o amor de meus campos e baldios, / Meu casal que é uma ilha aos quatro ventos."...,(3) "às audições do Atlântico", e onde ..."houve salinas quase à minha porta". (4)
Terra mítica, um lugar mágico, sob a proteção do medieval Castelo de Monte-Mor-Velho. Pequena em dimensão mas grande pela beleza do canto duartino, cujo estro poético de altíssima qualidade a projetou universalmente, como justamente referiu o nosso saudoso amigo, Joaquim Simões Cantante, ereirense de gema e representante da população na Homenagem Nacional prestada ao emérito conterrâneo, em Junho de 1956.
Afonso Duarte amava visceralmente a sua Aldeia. As fontes, os campos, o Sol, os milheirais, os feijoais, o granzoal de bico, as árvores, os frutos, as videiras, os goivos, as rosas, as andorinhas, os pardais, as gaivotas, a cegonha, o pato bravo, o coaxar de rãs... É a Natureza estuante de vida! Nada escapou ao seu sagaz espírito de penetrante finura, perscrutador das coisas simples e dos pequenos nadas da vida.
As vindimas, as uvas no balseiro, as medas loiras, o gado, as colheitas, o cereal nas eiras, o painel das gandarezas das mondas e das mulheres das sachas ao calor, os rostos saibrosos de cavadores do trabalho suado e praguejado. É o suor de sol a sol: "Enxada à terra, ó braços da pobreza".(5) Esta espantosa capacidade de admiração que devém culto da Natureza e de que faz eco a "Obra Poética", manifestou-se já em tenra idade. No fim da vida, o autor de "A morte da rola" recorda-se ainda dos primeiros versos que escreveu por volta dos 13 anos, no período intercalar de dois anos a seguir à instrução primária e a entrada no colégio Mondego, em Coimbra: "Ó  encantos  da Natureza / Se eu soubera dizer / Com exatidão e beleza / Era o bem que queria ter". (6) Mas, para o Poeta, nesta "Ilha dos Amores" tudo é animado e comunga de humanidade: "É o homem em tudo!.../ E de Árvores, de Pedras, e de Rios / Componho eu toda a minha humanidade". (7)
É esta mensagem de bucólica e franciscana ternura pelas coisas simples e pequenos nadas que faz de Afonso Duarte um dos mais representativos poetas da primeira parte do séc. XX, na opinião dos críticos e dos escritores seus contemporâneos. E porque não (?!) considerá-lo também hoje um ecologista avant la lettre...

"Ilha de Ereira, ó Guernesey dorida"...
Porquê esta estranha referência a Guernesey? Certamente porque na sua Aldeia, durante três ou quatro meses no ano, as cheias reduziam-na à condição de ilha, tornando-a semelhante àquela. É a sensibilidade estética do Poeta a falar mais alto, pois, como ele admiravelmente disse, "Na alma dum poeta, vê-se nela o céu".(8) Parece-nos que a evocação da ilha anglo-normanda do Canal da Mancha (de 78 Km2), para comparação com a Ilha de Ereira, (9)  é intencional. Guernesey serviu de guarida a Victor Hugo que entre os anos 50 a 70 do séc. XIX aí se exilou, vítima das vicissitudes politicossociais da França nesse período. A simpatia dos literatos portugueses pelo escritor francês foi notória. Entre nós beberam na obra do autor de "Os Miseráveis" a Geração de 70, nomeadamente o poeta-filósofo Antero de Quental e Eça de Queirós, bem como Guerra Junqueiro e Gomes Leal.
O grande lírico francês e figura proeminente da literatura europeia abordou temas caros ao espírito de A. Duarte - a infância, o amor, a natureza... -, e pugnou pelos ideais humanitaristas e republicanos. Assim, é natural que o Poeta do Baixo Mondego se considerasse próximo estética e ideologicamente do notável escritor, porque também Afonso Duarte sonhava com "leis sociais que deem ao homem confiança no homem".(10)
"Onde me exilo a este sol de inverno"...
Trata-se de um retiro voluntário que se adequa bem ao espírito independente do Poeta: "Terra, Mar e Céus! / Comigo e com Deus!"- versos que integram um dos seus ex-libris. E solitário: " Tenho perante a vida o destino imposto: / Viver, mas no bem longe! / Da montanha do amor erguer aos céus meu rosto, / Entre os homens ser monge"... (11)   
A respeito desta condição da Terra de Ereira, rodeada de campos alagadiços e encastoada entre dois braços do rio que parecem afagar esta Princesa do Mondego em doce aconchego, isolada vários meses pelas cheias, o Poeta refere-se de forma impressiva: ..."As cheias vindo às casas! / Tudo afoga em dilúvio, ervilhal e giesta, / Do próprio lar as brasas! // O vento sopra ao desamparo, o vento grita, / Como um louco varrido! / E água e água em caudal, sob a abóbada infinita, / A aldeia é um gemido. // ... A água é como loba!...(12)  
E pensar a gente, até há pouco, que este evento era assunto de um passado longínquo da memória duartina! ... Porém, a incúria dos homens e os caprichos da Natureza vieram mostrar ao país e ao mundo, em finais de Janeiro de 2001, o acerto e a atualidade das palavras da Sibila da Ereira.
Mau grado tais limitações, esta "aldeia à beira-mar" deu-lhe a vivência de uma ocupação laboral ambivalente - a de lavrador e de pescador: "Meio ano a lavoirar / Outro meio ao anzol! ".(13)
E na heráldica desta terra mondeguina ficaram para sempre gravadas as palavras do Poeta: "O arado e a vela latina devem formar o brasão da Ereira".(14)
"Que irá no meu País? Que irá na Vida?"...
A despeito do retiro / exílio da Ereira, não se pense que o autor de "Soneto de Ereira" fosse capaz de cortar as amarras com o mundo. É ele que o diz: "Para fugir de casa / Tenho um barco no rio".(15) E mais tarde, nos tempos negros da Segunda Guerra Mundial, o Poeta possuía na sua casa do monte um rádio alimentado a energia eólica, onde reunia familiares e um ou outro conterrâneo para saberem novas da guerra. Era, uma vez mais, a sua preocupação pelo homem e o seu destino.
    
 João Figueira
NOTAS

1 "Terras do Infantado", in Romanceiro das Águas.
2 "Diálogo com a Minha Terra", Ibidem.
3 "Ilha dos Amores", Ibidem.
4 "Monte-mor", in Ossadas.
5 "Em Louvor do Sol", in Rapsódia do Sol-Nado.
6 Afonso Duarte, in Carta a Carlos de Oliveira, s.d..
7 "Ilha dos Amores", ibidem
8 "Carta a um "Amor", in Ritual do Amor.
Formando uma ilha, em meia lua, com uma superfície de uns 6 km2. É na borda de um pequeno monte - em forma de pirâmide truncada, com uns 20 metros de altitude,..., na parte mais cimeira - que assenta esta pequena aldeia, onde se aglomera a mais densa população rural do País". Afonso Duarte, in De Terras de Montemor (Diário de Coimbra, 11-7-1936). 
 10 "Afonso Duarte, in Carta a António Sérgio, s.d..
11 "Terras do Infantado", Idem.
12 "Idem", IdemO significado simbólico de "loba" engloba " tanto um aspeto satânico associado à ideia de aniquilamento do mundo, como um aspeto benéfico, regenerador e fecundo. A mesma água que aterrorizava o povoado e destroi os campos, inundando-os de areias, carreia os nateiros que fertilizam os solos e consagram a fama dos campos do Mondego". Apud Irene Maria Vaquinhas, in Violência, Justiça e Sociedade Rural, I. Cit. de Dina de Sousa, in Ereira - Poesia e Vida. Ed.: Grupo Folclórico A. C. D. S. da Ereira.
13"Búzio do Mar", in Romanceiro das Águas
14Afonso Duarte, in Diário de Coimbra, 11 Julho 1936.
15 "Aldeia", in Ossadas.
Ereira, Abril de 2004
     

TU, PALAVRA DE POESIA !...

                   "TU, PALAVRA DE POESIA!..."(1)

      Nascido e criado na Pérola do Baixo Mondego, Afonso Duarte era um homem de porte atlético, alto e magro como um choupo das margens do seu celebrado rio, distinto sem ostentação, um olhar penetrante de águia denunciador de uma intensa força anímica. Apesar de aos trinta e cinco anos ter contraído uma paraplegia que limitou parcialmente o movimento dos membros inferiores até ao fim da vida, nem por isso os traços essenciais da sua personalidade foram minimamente afetadas. Pelo contrário. Nos anos vinte e trinta manteve uma intensa e diversificada vida intelectual ao serviço da educação, da investigação pedagógica, do folclore, das artes populares e da poesia. Tudo isto à mistura, por algum tempo e sucessivamente, com funções administrativas no ensino secundário oficial (Liceus Infanta D. Maria e José Falcão, em Coimbra).
Sociável e evasivo, possuidor de uma cultura embebida de sabedoria e camponês/agricultor quando calhava, inteligente sem vaidade, modesto mas de firmes convicções, de palavra estimulante, ora irónica, ora sibilina ou mordaz, detestava a bajulação mas era sensível às pequenas atenções e delicadezas.
Em suma: Afonso Duarte tinha um caráter de português à maneira de Francisco Sá de Miranda (1481- 1558), também ele poeta e lavrador, que em auto-retrato afirmou ser "homem de um só parecer, dum só rosto..., de antes quebrar que torcer". Por seu turno, o poeta da margem do Mondego ergue bem alta a voz quando afirma nesta quadro de "Ossadas"(1947): "Podem encher-me os punhos de grilhetas, / Ou pregar numa cruz a vida minha. / Não é canto propício de poetas / O velho medo que guarda a vinha".Ou ainda, de outra maneira, para se aquilatar da estatura moral do ilustre ereirense, e segundo as suas palavras: "Mais vale merecê-los sem os ter, que tê-los sem os merecer". Isto afirmou quando as novas orientações da castradora "política do espírito" iniciadas já no governo da Ditadura Nacional (1926-1933) entraram em ação e cortaram cerce os seus entusiásticos e belos projetos educativo-profissionais.
O cantor dos campos do Baixo Mondego deu a si próprio este sugestivo retrato: "É na poesia lírica dos rios, / No sarcasmo das rugas das montanhas, / No que me enche de mar, de sonho e de desvario, / Que meu retrato vivo se desenha".(2) Agarrado ao terrunho do monte da Ereira, o poeta camponês confessa-se: " A terra cultivei amargo e rude, / No sonho de melhor a ter servido"(3)..., num processo de identificação com o seu povo - "Cavador que vais cavando / Hoje canto do teu mando", - com "rudes versos feitos de saibro e lágrimas choradas", no olhar de homens e mulheres prisioneiros de um destino injusto - "Ah! o heroísmo de cavar a terra / Sem o pão nosso de cada dia para a boca!".(4)
Poeta telúrico, irmão do Sol, das montanhas, das árvores e amante da Vida, teve o gosto e a alegria de escrever poesia com as palavras mais próximas da vida palpitante e colorida: "Choveu. E que bonito os batatais, / Os feijoais, os ´milharais´! // Videiras, tenho-as já que dão provas. / E as árvores novas? / Cada rebento, um abraço" // Depois, vem sol: Um solzinho lindo / Como um efebo loiro"... Bonito! / Bonita primavera! Chuva e sol".(5)
Mas a nota que coloca Afonso Duarte à altura dos poetas maiores da poesia lírica de todos os tempos é a profunda solidariedade com o seu povo e as realidades concretas: "Ó dor e amor! Ó Sol da manhãzinha! / Canções da gente rude, se as escuto, / Eu mesmo cavo e sou quem poda a vinha!".(6)
Solidariedade que se transmuda em raiva, na Tragédia do Sol-Posto _ um canto à Ereira, à luta e à revolta do homem com a terra... que é também a luta e a revolta do Poeta.
Como poeta e como homem manteve ao longo da sua existência a frescura e a juventude de espírito, conforme nos confidencia: "Ainda crente, ao descair da idade, / Quando o coração já mal se escuta? / É o quanto vos deve, mocidade, / O meu agreste espírito de luta. // ... Trazeis-me fé, renovo, a novidade / Que a Terra há de criar, _ mãe incorrupta!..."(7)
Apesar das contrariedades e das injustiças de que foi alvo e contra as quais manteve uma resistência inquebrável de mais de vinte anos, Afonso Duarte, homem de têmpera rija, jamais desistiu de cantar a Vida:  A atestá-lo está, por exemplo, esse modelar e emblemático soneto que é um canto de lirismo naturalista de amor à Vida _ Rosas e Cantigas 
"Eu hei de despedir-me desta lida, / Rosas? _ Árvores! hei de abrir-vos covas / E deixar-vos ainda quando novas? / Eu posso lá morrer, terra florida! // A palavra de adeus é a mais sentida / Deste meu coração cheio de trovas... / Só bens me dê o céu! eu tenho provas / Que não há bem que pague o desta vida. // E os cravos,  manjerico, e limonete, / Oh! que perfume dão às raparigas! / Que lindos são nos seios do corpete! // Como és, nuvem dos céus, água do mar, / Flores que eu trato, rosas e cantigas, / Cá, do outro mundo, me fareis voltar"
À beira do coval do poeta, Miguel Torga, num gesto de nobreza de sentimentos, proferiu uma bonita evocação de que extraímos as palavras seguintes: "Sim, restam-nos a recordação do que foste e o respeito pelos versos que escreveste. E dela e dele tiraremos o lenitivo possível. Mas tínhamo-nos acostumado à eternidade da tua presença. ´Eu posso lá morrer terra florida!´, in "Ritual do Amor". Desde este grito de luz, ninguém mais acreditou nesta hora de negrura." 
Não é por acaso que as flores, nomeadamente as rosas, ocupam um lugar especial na poesia de Afonso Duarte.(Cita-as cerca de quarenta vezes na "Obra Poética"). Nos canteiros florais adjacentes à casa do Poeta, bem como no jardim do lado norte da casa dos pais havia roseiras em profusão. Estas últimas sobreviveram até às obras que transformaram o imóvel em Centro de Dia da Associação Cultural Desportiva e Social da Ereira, ATL da Associação Fernão Mendes Pinto, Sala/Biblioteca Afonso Duarte e sede da Junta de Freguesia), cujas rosas se chamavam "rosas de Portugal" e localmente conhecidas por "rosas do Poeta". Afonso Duarte evoca-as para expressar estados de alma: sentimentos, afetos, qualidades, sonhos...
Ora sensibilizava-o a cor: "Porque morri / Se Maio me dá rosas? / (E sabe algum pintor / A pureza da cor / Que têm as rosas?)."(8)
Ora o caráter efémero: "E haver rosas na mesa, a flor do instante".(9)
Seja o perfume: "Oh! estética feliz do sol a sol, / Na terra que removo com o meu braço, / Ver as plantas crescer, ou me console / Um respirar de rosas pelo Espaço!..."(10)
Seja em tom profético: ..."Cada um astro é sinal / Para uma nova partida! / A Terra? _ Ponto final, / Que seja berço de rosas?"...(11)
Quer um sentimento de desilusão: ..."Enchi de rosas a terra / E levo nas mãos espinhos". (12)
Quer nessa bela e humaníssima sentença: "Carrega-te de afeto nas palavras, / No gesto e luz dos olhos: / Colherás oiro do chão que lavras, / Rosas e não abrolhos". (13)
Enfim!...as pequenas coisas que dão gosto e beleza à Vida: “... Mas sem aves, sem rosas de toucar, / A vida era tão pobre, era tão nua!". (14)
E, quando se aproxima o fim dos seus dias, e os homens de boa vontade enamorados da beleza da sua Arte, se juntaram na Ereira, naquele memorável Dia de S. João (24 de Junho de 1956) para uma última homenagem ao Homem cuja Obra é reveladora de uma "nobre e dramática mas generosa Vida de Poeta" (Mário de Castro), não foram uma vez mais esquecidas as rosas. Afonso Duarte escreveu para o evento os versos adequados à nobreza dos seus sentimentos naquela hora de exaltação humana e poética:
"Alegre de vós todos, homens livres, /.../ Neste mundo de amor que é a poesia. / / Por sobre terramotos e vulcões de lama / Que abrem boca na Terra, / As rosas de quem ama". (15) 
Enamorado das flores, o Poeta fez das rosas um dos ex-líbris que acompanham algumas das suas publicações.
 Ereira, Setembro de 2004
___________
1 Redondilhas, in "Canto de Babilónia"
2 Três Estâncias, in "Ossadas"
3 Soneto, in "Sibila"
Estepa, in “Ossadas”
5 Bucólica, in Idem
Versos da Madrugada, in "Rapsódia do Sol-Nado"
7 Soneto, in "Post- Scriptum de um Combatente"
8 Porque morri, in "O Anjo da Morte e Outros Poemas"
9 Morada, in "Post-Scriptum de um Combatente"
10 Sol, in "O Anjo da Morte e Outros Poemas"
11Redondilhas, in "Sibila"
12Recordação, in "Post-Scriptum de um Combatente"
13Lápides, in "O Anjo da Morte e Outros Poemas"
14A Morte da Rola, in "Ritual do Amor"
15Homenagem, in "Lápides e Outros Poemas"