domingo, 19 de maio de 2013

A Gata “UMA”

É de linhagem siamesa. De porte elegante. Aceita-se que esta estirpe seja originária do sudoeste asiático que teria vindo para Inglaterra na segunda metade do séc. XIX e daí para diferentes países do mundo. Quando nasceu tinha um destino marcado. Ser animal semi-vadio condenado à luta pela sobrevivência. Nasceu em 2003 de uma ninhada de vários filhotes. Porém, esse destino em breve seria outro. É que ocorreu uma circunstância inusitada. A nossa neta, Maria, de sete anos de idade na altura, manifestou à avó a vontade de ter um porquinho no quintal da Ereira, com toda  a liberdade de entrar e de sair no/do espaço habitado. O visado porquinho nasceu de uma ninhada de dezasseis filhotes, sendo o número de tetas da mãe porca quinze. Como a natureza nem sempre é perfeita, havia um recém-nascido excedentário. Este fenómeno impressionou vivamente a criança. 

Agora imagine-se um porquinho em casa a confusão que era!... Esta ideia extravagante colidia com o feitio da avó, e deve ter sido inspirada numa qualquer obra de literatura infanto-juvenil. Todavia, entre neta e avó existia uma cumplicidade afetiva forte, o que poderia facilitar a desistência da ideia excêntrica da Maria. Numa última tentativa de levar avante o seu propósito, a menina ainda sugeriu um galinheiro devoluto no quintal da avó para acomodar o porquinho, o qual ficaria à guarda da Maria Couta, uma idosa de mais de oitenta anos que ainda nos serve. Mas, como a casa da prima Irene distava uns cem metros da habitação da avó, aquela teve uma ideia luminosa, na expetativa de uma solução a contento das partes. 
Palavra puxa palavra! E a páginas tantas, a Luisinha, filha da prima Irene e vive ao lado, sugeriu a alternativa de trocar o porquinho por uma gatinha também recém-nascida. A Maria aceitou de boamente a ideia sem pensar mais no assunto do porquinho. Passados que foram alguns dias, a jovem neta queria levá-la para casa dos pais, em Montemor. Entretanto o pai, que não simpatizou com ideia da coabitação com felinos, perguntou como se chama? É um gato ou uma gata? Responde a filha prontamente: É uma gata! De rompante o pai diz: Então vai chamar-se “UMA”. É esta a explicação do nome dado à bichaninha. 
Entretanto acabou por prevalecer a ideia de levar a gata para a casa da avó, na Ereira. Aí as condições de segurança do animal não eram as melhores. Pelo contrário... Num certo dia, a bichana resolveu evadir-se sem deixar rasto. A família saiu a terreiro  com medidas tendentes a capturar o bicho, não fosse ocorrer algum mau encontro. Mas qual quê?! Ninguém da vizinhança deu conta da UMA. A Maria, que já se afeiçoara à sua gatinha, chorava baba e ranho. São assim os afetos das crianças para os animais! Nisso dão lições aos adultos que, apesar dos animais serem participantes da nossa humanidade, ainda os tratamos pouco, como tal. 
Porém, após três dias de desassossego, eis que a gata apareceu à beira-rio, a uns trezentos metros de casa da avó. O Zé Moço, um vizinho da borda do Monte, foi quem nos disse que por ali a vira, junto à ponte da Ereira a miar muito.  A Olívia, que mora mesmo juntinho ao rio, corroborou que por ali apareceu uma gata de raça siamesa. Percebeu que o animal andava perdido e esfaimado. Deu-lhe comida abundante até ficar saciado. 
A UMA, dada a sua condição de animal predador, continuou a explorar o terreno até que foi descoberta e levada para casa da avó. Foi uma busca com um final feliz! Entretanto a Guida, mãe da Maria, também gosta de gatos. Num belo dia, mas mais tarde, pessoa amiga deu-lhe uma gatinha a que foi dado o nome de “MU”. Esta, por sua vez, teve uma ninhada e uma das gatinhas, a "BEE", ficou em casa. Porém, a época estival chegou ao fim... Era o tempo de passar o inverno no andar da Figueira. Foi consensual a UMA continuar na companhia da avó Melita. Isto significava para a gatinha transitar de um espaço livre para outro de clausura, com pouco mais de cem metros quadrados. É óbvio que a felina ia estranhar agora um espaço limitado para os seus habituais movimentos, mau grado o nível de segurança ser elevado, julgávamos nós.  Todavia o inimaginável estava para acontecer! Num dia aziago, a gatinha encontrava-se sozinha em casa. Possivelmente stressada e deprimida! 
Como se trata de animal predador, nas primeiras horas matinais deliciava-se a observar, empoleirado no peitoril da janela da cozinha, o voo festivo de pombas e de pássaros que lhe punham instintivamente as garras de atalaia e os dentes à mostra. Mas certo dia, aconteceu o azar da janela ficar entreaberta, o suficiente para a gatinha saltar do peitoril da janela para o estendal do tardoz do 4.º piso do prédio. Face ao inédito de uma situação desconfortável, talvez a UMA tenha tentado reverter ao ponto de partida. Contudo não era fácil dada a instabilidade das cordas do estendal. O resultado foi um tombo em queda livre, talvez um pouco amortecido nos estendais de baixo, até ao chão. Com efeito, no caso de queda, os felinos instintivamente fazem rodar o corpo de modo a cair de patas que são almofadadas, intervindo também a cauda no equilíbrio e na flexibilidade do animal. Pouco depois do acidente, eu regressava a casa, eram horas de almoço, vi a gatinha ajoujada no chão com aquele olhar tristonho de quem admitia a culpa e pedia perdão. Admito que sim! Porque a nossa gatinha já provou à saciedade que tem sentimentos, emoções e inteligência prática para resolver algumas situações concretas. Como animal de nossa estimação, imediatamente dirigimo-nos ao veterinário para o despiste de  qualquer mazela ou fratura. Passou a noite na clínica. O diagnóstico foi positivo. Nada que inspirasse cuidado.
Quando os nossos filhos eram pequenos, criámos passarinhos! Entrementes passaram-se os anos e desde há dez que temos esta gatinha que nos tem feito boa companhia. Tem sido gratificante conhecer as suas características e comportamentos habituais: audição direcional, o que lhe permite orientar as orelhas, independentemente, para os locais de som; higiene na limpeza dos pelos e no enterrar das fezes e urina; quando desestabilizada emocionalmente, corre desarvorada no corredor da casa, farta-se de miar, dando-nos a sensação da necessidade de atenção, de carinho. E na verdade assim é! A UMA comunica connosco, fala mediante vários tipos de miado e ronrona quando em estado de prazer ou de satisfação. 

Ao jeito de conclusão. Para os defensores de uma conceção biocêntrica do ambiente, o homem é apenas um elemento a mais no ecossistema da natureza. Não representa mais do que um elo na cadeia de reprodução da vida. Esta é uma visão ecológica que sustenta a educação ambiental, um dos grandes desafios do nosso tempo, in Fritjof Capra. Segundo o princípio da alteridade, o conjunto dos elementos do nosso meio têm o estatuto de um eu. Neste sentido, cada parte do todo torna-se Tu que passa a outro EU. Este sujeito-tu suscita a presença do sujeito-Eu. A realidade humana é, pois, a dum ser em relação. Segundo o filósofo Hans Jonas, a educação ambiental privilegia o princípio de responsabilidade para com o presente e o futuro. Por outro lado, o filósofo e teólogo Leonardo Boff defende um novo “paradigma de convivialidade que preconiza o zelo do ser humano para com a totalidade dos seres que constituem a natureza." 
E mais, “há descuido e desinteresse  pela dimensão espiritual do ser humano, pelo ´espírito de gentileza´ que cultiva a lógica do coração e do enternecimento por tudo o que existe e vive". Também o filósofo  Martin Heidegger emprega o conceito Terra para significar “não o sentido do solo a que o nosso corpo é atraído, mas o todo que participa de um mesmo ciclo: o ar, as águas, os animais, o próprio solo, etc. A natureza num sentido primordial não é aquela que se revela ao engenheiro, que procura nesta matéria prima para o desenvolvimento tecnológico, nem a que se revela para um homem de negócios, que vê o mesmo cenário em forma de investimento, mas sim a que se revela ao habitante. Para Heidegger, a natureza vai além da ideia de instrumentalização e revela significados que não se limitam à objetividade ou à linguagem objetiva: (...) É a natureza ricamente significante que se apresenta apenas ao habitante e, apenas por este motivo, também pode ser a natureza encontrada e cantada pelo poeta.”