domingo, 2 de junho de 2013

A Criança - 2

      O mês de junho começa sob o signo da criança. No dia 1 celebra-se o Dia Mundial da Criança. Ela é o futuro, o futuro de todos nós! Porém, nestes tempos de correrias, preenchidos com milhentas ocupações e solicitações de toda a ordem, a que obriga o estilo de vida acelerado e/ou competitivo do nosso tempo, facilmente se entra em stress, com as conhecidas consequências para o desequilíbrio emocional, individual e familiar. Se os pais e os educadores dificilmente escapam imunes a esta situação, então as crianças - sempre a parte mais fraca! - são certamente as primeiras vítimas.

     Não é verdade que, neste contexto, nós adultos nos vamos desabituando de ver "a criança na criança", porque a nossa mente, orientada noutras direções, não encontra suficiente disponibilidade para ela? E a educação exige do adulto atitudes de compreensão, de amor e respeito; do espírito de aceitação e de reconhecimento da importância da infância como etapa necessária no desenvolvimento do adulto; da atitude de tolerância pelos “erros” e hesitações da criança, com a consciência clara da nossa parte que ela tem maneiras próprias de ver, pensar e sentir.

     Já em 1829, Almeida Garrett (1799-1854) no tratado "Da Educação" advertia que "o educador esteja sempre alerta, e não deixe escapar uma ocasião de ensinar alguma coisa ou de retificar outra; mas não force ele essa ocasião, e quando a faça nascer porque muito convenha, seja com tanta naturalidade que pareça puro acaso"1.

      Quanto ao método de aprendizagem, Garrett é perentório: "O luminoso método da análise, isto é, aquele no qual o educando é o artífice de suas próprias ideias e princípios, em que, dirigido mas não levado, guiado mas não forçado, no caminho da virtude ou da ciência, ele mesmo ache por si as verdades que lhe convém saber; e seu próprio saber, obra sua, terá tais raízes e tal força que nada o abalará no espírito ou desarraigará do coração"2.
      Como se vê, o autor de "Viagens na Minha Terra" adota a metodologia socrática da descoberta das ideias e princípios, isto é, o saber verdadeiro ou ciência identifica-se com a virtude - perspetiva também defendida no séc. XVIII por J.- J. Rousseau (1712-1778) e H. Pestallozzi (1746-1827), arautos da crítica do intelectualismo excessivo da pedagogia tradicional protagonizada por ambos, e de quem Garrett também recebeu inspiração. Mas importa ainda dizer que o escritor liberal, introdutor do Romantismo em Portugal, de acordo com o ideário da referida corrente literária, preconiza a afirmação plena do individual, do diferente, nos homens como nas nações.
       
       Estas referências a Garrett conduzem-nos diretamente a Afonso Duarte, nascido na freguesia da Ereira, MMV, que, em alguns aspetos, é considerado um neogarrettiano. Assim, na controvérsia em torno do desenho de imitação e do uso do papel quadriculado na escola primária tradicional, por um lado, e do desenho espontâneo e livre da nova didática, por outro, Duarte, um séc. mais tarde, retoma a linha crítica de Garrett. Com efeito, o brilhante professor de modelação e desenho da Escola Normal Primária de Coimbra afirma que "não há nada que mais obstrua a compreensão da arte das crianças do que esse convencional formalismo que faz limitar os meios de expressão a uma imitação tão fiel quanto possível da natureza. A habilidade é a técnica do lugar comum e de modo algum pode servir a bem compreender a produção gráfica ou plástica das crianças (...). Criou-se no vulgo um ideal de perfeição mecânica que se traduz na técnica artística pelo conceito de habilidade e se figura por uma atividade meramente imitativa”3.

       E conclui o autor de "Os desenhos animistas de uma criança de 7 anos"4.
"Vivem, portanto, fora do mundo infantil aqueles que têm a criação artística como pura atividade de imitação, - fiéis que ficaram à velha escola que tinha o desenho como uma prenda, encarcerando a criança nos moldes do adulto, iniciando-a pela cópia de estampas, e para cúmulo de tudo, aprisionando-a na quadrícula"5.

        Estavam, pois, lançadas as bases, também por via do desenho espontâneo e livre, para colocar a criança no centro do sistema educativo e da ação pedagógica.
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1 Carta Terceira, in "Da Educação"
2 Carta Primeira, in "Da Educação"
3 Presença - Folha de Arte e Crítica. Coimbra, Nov. 1933
4 Imprensa da Universidade. Coimbra, 1933
5 Presença, ibidem