segunda-feira, 13 de agosto de 2012

A MULEMBA

      Este é o título do primeiro de cinco já publicados pela escritora Maria Luisete Souto Cardoso Baptista. Agradou-me deveras esta estória infanto-juvenil de uma menina de seis anos cuja narradora é a mãe que a conduz, antes de adormecer, à envolvência de um mundo fantasmagórico onde se deixa seduzir por formigas-brancas, galos, galinhas, ratazanas, passarada, pombas, ponte, rio, árvores... no contexto da imensidão africana que serve de palco ao desenrolar da estória. Com efeito,  todas essas vivências infantis integram-se num mundo mágico de brincadeiras e fantasia onde habita o carinho, a ternura e o amor. Naquele ambiente a criança sonha, o que é maravilhoso, porque “sonhar é viveres coisas fantásticas”- diz-lhe a mãe. 
      Na verdade, é esse mundo de pequenos nadas que os olhos da criança descobrem, como se fosse o limite, o céu, ou o paraíso perdido dos adultos, tantas vezes insensíveis e cegos para o invisível, no qual reside o essencial, que se oculta por baixo do que os nossos sentidos apreendem. O título da obrinha, A Mulemba, escrita numa prosa de inspiração poética, reporta-se a uma ´entidade´ ficcional que na narrativa possui o virtuosismo de se metamorfosear consoante o mundo interior dos sentimentos, emoções, paixões e experiências que perpassam no íntimo da criança, ao longo da sua caminhada existencial. O presente de parabéns do pai, quando a sua menina faz sete anos, é uma árvore frondosa com laço vermelho no tronco porque “era dia de festa, dia dos seus anos e de A Mulemba, nome que significa “árvore de copa muito densa”. Doravante “tornaram-se amigas inseparáveis”. Porém a família deixou a casa grande e mudou-se para um pequeno apartamento. Assim, por falta de espaço, desta vez a opção dos pais, para o presente do dia de anos da sua menina, recai sobre “um cato da loja da esquina”. 
    Entretanto, o mundo idílico e mágico, em que a criança se move, vai agora, confrontar-se com as obrigações escolares impostas pelos ´colonizadores´ adultos que a querem ´moldar´, ao ensinar-lhe coisas que não sente e muito menos entende, por se distanciarem do quotidiano das cores e cheiros que inebriam os seus sentidos e lhe enchem a alma. Este é o mundo dos afetos que lhe transmitem os pais e “a irmã e mãe terra que nos sustenta e nos governa, e dá tantos frutos e coloridas flores”, segundo a mística do poveretto de Assis no admirável Cântico das Criaturas. Afinal, essa outra humanidade, no dizer do Poeta. 
  Todavia o choque de mudança da menina para a escola leva a evadir-se da sala de aula e sonhar com “A Mulemba de copa volumosa, como se fosse um telhado de plumas. Debaixo dela, constrói e destrói cidades inteiras, inventa diálogos com a árvore e esta ouvia tudo... tinha perdido a noção do tempo”. Com efeito, a escola era uma construção racional dos adultos em contraponto à espontaneidade das suas vivências infantis. Porque “Sou apenas uma criança"!, exclama. Na escola, um dia sonhou com um local cheio de árvores. Acordou ao pé de uma mangueira, “fartou-se de mangas, mas, agora sim, estava feliz junto de uma nova amiga”. 
    Porém a menina cresce, estuda e aprende naquele novo mundo dos adultos em que “tudo era uma obrigação”, levando-a “a deixar de brincar, de rir, de sonhar”. Mas paulatinamente descobre que, sem esquecer A Mulemba, nova amiga surge, porque a vida assim proporcionou, e então “os dias passaram a ser mais alegres e azuis”. 
   Depois de Angola e do Brasil, até 1975, vem a vez da Figueira, onde finalmente se instala. Aqui tem “um cato para cuidar, para amar”, . 
   O livrinho contém uma mensagem ecológica forte em torno de um dos temas recorrentes, maiores do nosso tempo, com um objetivo didático-pedagógico: “As árvores e os animais também ficam tristes...”; o cato, apesar de pequenino, “precisa de ti, do teu carinho, das tuas atenções”; e generalizando, “grandes ou pequenos todos gostam de amor...” 
  Dada a sua formação académica, com licenciatura em Línguas e Literaturas Modernas (Português, Francês), e longa experiência docente no ensino secundário, hoje aposentada da Escola Doutor Joaquim de Carvalho (Figueira da Foz), Maria Luisete Souto Cardoso Baptista estende a sua apurada sensibilidade estética ao âmbito da arte pictórica, numa bem conseguida urdidura entre a palavra escrita e a pintura. Este interessante entrosamento constitui uma mais-valia das obras desta escritora, com créditos firmados, pois proporciona sinestesias que seduzem o leitor até o fim da narrativa. Formalmente A Mulemba é um livrinho de texto e ilustrações cuidadosamente trabalhados ao longo das doze partes ou painéis de múltiplas valências. A combinação pictórica dos castanhos, verdes, azuis, vermelhos, cinzentos, amarelos ..., apresenta tonalidades de uma suavidade que dir-se-ia etérea. Por outro lado, o papel que serve de suporte ao texto e ilustrações é de boa qualidade. 
    Aquela menina sonhadora, contestatária da escola, que viveu em Angola e Brasil, "personagem" principal da narrativa, por fim fixou-se na Figueira da Foz - a  nova representação de A Mulemba. É, obviamente, uma bonita estória com ingredientes e contornos autobiográficos. (Pé de Página Editores, Março 2005).

1 comentário:

  1. Lídia Jorge escreveu a propósito de “A Mulemba”-“É um belíssimo conto, escrito com elegância, conhecimento de como se tece um discurso de memória, e cheio de força pela realidade que está atrás e vem reunir-se no presente, sob a sua mão. Continue.”
    Há sempre uma releitura possível...
    Obrigada por mais esta abordagem tão completa da obra, já que ela é o somatório de várias linguagens.

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