terça-feira, 28 de agosto de 2012

ECOS DO DRAMA DE UMA JOVEM POR TERRAS ANGOLANAS


         O tempo que já passou pesa muito mais do que o que está para vir (Marcel Proust)

  Trata-se de uma narrativa de memórias ainda não publicada em livro—ECOS DE MINHA MEMÓRIA (EXCERTOS)—, gentilmente cedidos pela escritora Maria Luisete Cardoso Baptista. É uma peça literária escrita na primeira pessoa. Um relato de inquestionável autenticidade, fruto de uma experiência vivida em condições dramáticas num espaço e num tempo de sombras e pesadelos do território angolano. É pois uma descrição deveras impressiva, dir-se-ia escrita com o próprio sangue da escritora. 
Quando tudo aconteceu, tinha  Maria Luisete treze anos em Março de 1961. Era ainda a fase do desabrochar para a vida adulta. Como qualquer jovem da sua idade, acalentava sonhos e projetos no seu íntimo. Na terra natal (Santa Leocádia, Tabuaço, Viseu) os recursos para uma vida minimamente equilibrada e satisfatória eram escassos. Com efeito, na década de sessenta a miragem da emigração generalizada estava na ordem do dia. Conhecemos bem esse fenómeno da diáspora portuguesa que nos tocou também de perto entre familiares e amigos. 
    A família de Luisete, perseguindo uma estrela de melhor sorte, decidiu fixar-se em Angola. Mas a jovem apenas precisava de paz, segurança e um ambiente acolhedor, propício à valorização das suas potencialidades. Porém, os ventos da História repentinamente mudaram. Parecia coisa impossível!... O que aconteceu?!
A narradora situa o início da ação na fazenda dos pais a pouca distância da povoação Bembe, no norte angolano. E informa: “ Eu e os meus irmãos (...) pouco ou nada compreendíamos do que estava a acontecer e a razão de tal procedimento por parte dos angolanos negros. (...) Nessa fatídica noite (...), sons de batuque (...) chegavam até nós, como que anunciando, pressagiando algo de terrível”. Todo o espaço da região norte foi atingido pela tragédia: “Sangue, loucura, revolta, armas, atrocidades praticadas contra tudo e todos invadiram as nossas vidas e quebraram a harmonia, o feitiço de uma felicidade aparente”. 
Nestas circunstâncias, era forçoso assentar arraiais numa terra que desse mais segurança. A opção foi o Songo. Instalada aqui a família, a escritora confessa que “descrever os dias subsequentes, a sua amargura e tristeza, é como que pregar um espinho no coração de todos os que viveram esta tragédia”. E, em jeito de ponderação conclusiva, adverte que o veredito da História “terá de fazer justiça à bravura dos homens e crianças, de todas as raças, que caíram ao longo de quinze anos de luta” (...). Mas, como nada acontece por acaso, em toda esta via sacra de dramas e tragédias, que foi o fenómeno angolano de uma descolonização apressada, não podia deixar de aparecer, como que por sortilégio, um Cireneu. Foi o Senhor Caldeira, esse Bom Anjo, que, numa disponibilidade total e tão generosa, acolheu no seu prédio todas as senhoras e crianças foragidas de uma tragédia quase certa. 
   Perante os relatos trágicos dos acontecimentos, a palavra de ordem era todas as mulheres e crianças fugirem para a cidade do Uige. Era uma dor de alma, um Calvário de choros e lamentos! “Eu, meus irmãos e pais chorávamos também”... 
Mas, passadas duas semanas em permanente insegurança, “regressámos ao Songo “através de picadas e matagal”. Aqui também a situação era complicada. Porém, a breve trecho, Maria Luisete com os irmãos, mas agora sem os pais, teve de partir para o Negage, onde tomaram o avião para Luanda com mais duas crianças que lhes foram confiadas. Na capital angolana, longe dos pais sentiram-se perdidas, pois não conheciam ninguém.          Estavam entregues à sua sorte. Dominava-as o pavor do medo, da insegurança. Porém, outra vez bafejou-os a  sorte! Uma família - qual Bom Samaritano! - acolheu-nos, diz Maria Luisete.
Por fim aconteceu a tão ansiada  partida para Portugal, no dia vinte e sete de junho de 1961. Quando o navio zarpa do porto de Luanda, esta jovem vivencia a ambivalência de sentimentos de beleza e tristeza. Na natureza tudo estava pacífico e calmo, mas, por outro lado, à medida que a cidade se afasta dos olhos, mais funda fica  no coração. Era a hora do começo de um sentimento antecipado de  saudade que jamais se apagará. Pelo contrário, reforçar-se-á ao longo dos anos num processo positivo de reconciliação com o passado. Na verdade, Goethe tinha razão quando enunciou a máxima: Faz da tua dor um poema
Maria Luisete revive atualmente na escrita, na pintura e na fotografia ((facebook) lampejos desses tempos idos. Porque partilhar as memórias é salutar. Os seus leitores experimentarão decerto sentimentos e/ou emoções de  proximidade por admiração ou empatia para com a autora. E por isso lhe ficamos todos - os seus leitores - agradecidos.

2 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Tarefa, segundo o árabe ocidental, é o trabalho que se impõe a alguém.
    Sem dúvida que levei tempo a impor, a mim própria, a urgência deste trabalho, desta árdua tarefa de remexer nas arestas do meu passado, que eu julgara esquecido para sempre.
    A minha história não é singular, mas é a minha.
    Ela confunde-se com outras tantas histórias de outras tantas famílias que sulcaram os oceanos e foram à procura de algo. O conseguir narrá-la hoje acontece no momento exato em que se opera, dentro de mim, a harmonização e a reconciliação dos tempos e dos espaços.
    (...)

    Ao optar pela biografia narrativa, foi minha intenção escolher só as etapas do meu percurso vivencial que, de qualquer modo, pudessem ser representativas desse mesmo período, não só para mim, mas também para um punhado de gente que, decerto, se poderá rever nas múltiplas situações narradas.
    Uma vez que estamos numa época de cultura oral, virada quase culto, em detrimento do escrito, resolvi fazer jus a dois provérbios: “ As palavras voam, os escritos permanecem” (Latino); “A tinta mais pálida é melhor que a memória mais fiel” (Chinês), escrevendo este pedaço da minha história.


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