"DEU-ME O DESTINO EM BERÇO A MAIS FORMOSA ILHA"(1)
O nosso Poeta, como se diz ainda hoje na Ereira, fez da sua Terra um grande tema poético: "Ilha de Ereira, ó Guernesey dorida, / Onde me exilo a esta sol do inverno, / Que irá no meu País? Que irá na Vida?"...(2) E de forma mais enfática: " Canto o amor de meus campos e baldios, / Meu casal que é uma ilha aos quatro ventos."...,(3) "às audições do Atlântico", e onde ..."houve salinas quase à minha porta". (4)
Terra mítica, um lugar mágico, sob a proteção do medieval Castelo de Monte-Mor-Velho. Pequena em dimensão mas grande pela beleza do canto duartino, cujo estro poético de altíssima qualidade a projetou universalmente, como justamente referiu o nosso saudoso amigo, Joaquim Simões Cantante, ereirense de gema e representante da população na Homenagem Nacional prestada ao emérito conterrâneo, em Junho de 1956.
Afonso Duarte amava visceralmente a sua Aldeia. As fontes, os campos, o Sol, os milheirais, os feijoais, o granzoal de bico, as árvores, os frutos, as videiras, os goivos, as rosas, as andorinhas, os pardais, as gaivotas, a cegonha, o pato bravo, o coaxar de rãs... É a Natureza estuante de vida! Nada escapou ao seu sagaz espírito de penetrante finura, perscrutador das coisas simples e dos pequenos nadas da vida.
As vindimas, as uvas no balseiro, as medas loiras, o gado, as colheitas, o cereal nas eiras, o painel das gandarezas das mondas e das mulheres das sachas ao calor, os rostos saibrosos de cavadores do trabalho suado e praguejado. É o suor de sol a sol: "Enxada à terra, ó braços da pobreza".(5) Esta espantosa capacidade de admiração que devém culto da Natureza e de que faz eco a "Obra Poética", manifestou-se já em tenra idade. No fim da vida, o autor de "A morte da rola" recorda-se ainda dos primeiros versos que escreveu por volta dos 13 anos, no período intercalar de dois anos a seguir à instrução primária e a entrada no colégio Mondego, em Coimbra: "Ó encantos da Natureza / Se eu soubera dizer / Com exatidão e beleza / Era o bem que queria ter". (6) Mas, para o Poeta, nesta "Ilha dos Amores" tudo é animado e comunga de humanidade: "É o homem em tudo!.../ E de Árvores, de Pedras, e de Rios / Componho eu toda a minha humanidade". (7)
É esta mensagem de bucólica e franciscana ternura pelas coisas simples e pequenos nadas que faz de Afonso Duarte um dos mais representativos poetas da primeira parte do séc. XX, na opinião dos críticos e dos escritores seus contemporâneos. E porque não (?!) considerá-lo também hoje um ecologista avant la lettre...
Porquê esta estranha referência a Guernesey? Certamente porque na sua Aldeia, durante três ou quatro meses no ano, as cheias reduziam-na à condição de ilha, tornando-a semelhante àquela. É a sensibilidade estética do Poeta a falar mais alto, pois, como ele admiravelmente disse, "Na alma dum poeta, vê-se nela o céu".(8) Parece-nos que a evocação da ilha anglo-normanda do Canal da Mancha (de 78 Km2), para comparação com a Ilha de Ereira, (9) é intencional. Guernesey serviu de guarida a Victor Hugo que entre os anos 50 a 70 do séc. XIX aí se exilou, vítima das vicissitudes politicossociais da França nesse período. A simpatia dos literatos portugueses pelo escritor francês foi notória. Entre nós beberam na obra do autor de "Os Miseráveis" a Geração de 70, nomeadamente o poeta-filósofo Antero de Quental e Eça de Queirós, bem como Guerra Junqueiro e Gomes Leal.
O grande lírico francês e figura proeminente da literatura europeia abordou temas caros ao espírito de A. Duarte - a infância, o amor, a natureza... -, e pugnou pelos ideais humanitaristas e republicanos. Assim, é natural que o Poeta do Baixo Mondego se considerasse próximo estética e ideologicamente do notável escritor, porque também Afonso Duarte sonhava com "leis sociais que deem ao homem confiança no homem".(10)
"Onde me exilo a este sol de inverno"...
Trata-se de um retiro voluntário que se adequa bem ao espírito independente do Poeta: "Terra, Mar e Céus! / Comigo e com Deus!"- versos que integram um dos seus ex-libris. E solitário: " Tenho perante a vida o destino imposto: / Viver, mas no bem longe! / Da montanha do amor erguer aos céus meu rosto, / Entre os homens ser monge"... (11)
A respeito desta condição da Terra de Ereira, rodeada de campos alagadiços e encastoada entre dois braços do rio que parecem afagar esta Princesa do Mondego em doce aconchego, isolada vários meses pelas cheias, o Poeta refere-se de forma impressiva: ..."As cheias vindo às casas! / Tudo afoga em dilúvio, ervilhal e giesta, / Do próprio lar as brasas! // O vento sopra ao desamparo, o vento grita, / Como um louco varrido! / E água e água em caudal, sob a abóbada infinita, / A aldeia é um gemido. // ... A água é como loba!...(12)
E pensar a gente, até há pouco, que este evento era assunto de um passado longínquo da memória duartina! ... Porém, a incúria dos homens e os caprichos da Natureza vieram mostrar ao país e ao mundo, em finais de Janeiro de 2001, o acerto e a atualidade das palavras da Sibila da Ereira.
Mau grado tais limitações, esta "aldeia à beira-mar" deu-lhe a vivência de uma ocupação laboral ambivalente - a de lavrador e de pescador: "Meio ano a lavoirar / Outro meio ao anzol! ".(13)
E na heráldica desta terra mondeguina ficaram para sempre gravadas as palavras do Poeta: "O arado e a vela latina devem formar o brasão da Ereira".(14)
"Que irá no meu País? Que irá na Vida?"...
A despeito do retiro / exílio da Ereira, não se pense que o autor de "Soneto de Ereira" fosse capaz de cortar as amarras com o mundo. É ele que o diz: "Para fugir de casa / Tenho um barco no rio".(15) E mais tarde, nos tempos negros da Segunda Guerra Mundial, o Poeta possuía na sua casa do monte um rádio alimentado a energia eólica, onde reunia familiares e um ou outro conterrâneo para saberem novas da guerra. Era, uma vez mais, a sua preocupação pelo homem e o seu destino.
João Figueira
João Figueira
NOTAS
1 "Terras do Infantado", in Romanceiro das Águas.
2 "Diálogo com a Minha Terra", Ibidem.
3 "Ilha dos Amores", Ibidem.
4 "Monte-mor", in Ossadas.
5 "Em Louvor do Sol", in Rapsódia do Sol-Nado.
6 Afonso Duarte, in Carta a Carlos de Oliveira, s.d..
7 "Ilha dos Amores", ibidem
8 "Carta a um "Amor", in Ritual do Amor.
9 Formando uma ilha, em meia lua, com uma superfície de uns 6 km2. É na borda de um pequeno monte - em forma de pirâmide truncada, com uns 20 metros de altitude,..., na parte mais cimeira - que assenta esta pequena aldeia, onde se aglomera a mais densa população rural do País". Afonso Duarte, in De Terras de Montemor (Diário de Coimbra, 11-7-1936).
10 "Afonso Duarte, in Carta a António Sérgio, s.d..
10 "Afonso Duarte, in Carta a António Sérgio, s.d..
11 "Terras do Infantado", Idem.
12 "Idem", Idem. O significado simbólico de "loba" engloba " tanto um aspeto satânico associado à ideia de aniquilamento do mundo, como um aspeto benéfico, regenerador e fecundo. A mesma água que aterrorizava o povoado e destroi os campos, inundando-os de areias, carreia os nateiros que fertilizam os solos e consagram a fama dos campos do Mondego". Apud Irene Maria Vaquinhas, in Violência, Justiça e Sociedade Rural, I. Cit. de Dina de Sousa, in Ereira - Poesia e Vida. Ed.: Grupo Folclórico A. C. D. S. da Ereira.
13"Búzio do Mar", in Romanceiro das Águas.
14Afonso Duarte, in Diário de Coimbra, 11 Julho 1936.
15 "Aldeia", in Ossadas.
Ereira, Abril de 2004
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