No Centenário do “Cancioneiro das Pedras” e da publicação de “A Rajada” (1912)
. Afonso Duarte refere o “Casal do Sol-Posto, lugar da Terra de Ereira, sob o domínio do Castelo de Monte-Mor-Velho” (1), como localidade do seu nascimento, 1884/01/01, e faleceu em Coimbra,1958/03/05, na clínica do dr. Bacalhau. A sua atividade decorre na 1.ª parte do séc. XX. Foi poeta, prosador, professor, educador, pedagogista e etnógrafo. Para a posteridade deixou um pedido: — ser “recordado como poeta”. O pai opinava que, “fora da lavoura, só engenheiro ou tropa”. O rapaz apenas foi tropa ocasionalmente e de engenheiro nenhum interesse. Depois da escola primária, em Alfarelos, transita para o Colégio Mondego, Coimbra . Passados 4 anos matricula-se no 4.º ano do Liceu de José Falcão, Coimbra, 1902. Já nesta altura o gosto pelas letras manifesta-se, a ponto de Vitorino Nemésio dizer que “todo ele respirava literatura (2).
. Em 1909 frequenta o curso de Ciências Físico-Naturais, da Faculdade de Filosofia, concluindo o bacharelato em 1913, na Faculdade de Ciências, curso de Físico-Químicas da Universidade de Coimbra, entretanto reformada pouco antes.
Escrever sobre Afonso Duarte não é tarefa fácil, dada a complexidade e profundidade da sua obra. A sua poesia abarca uma vastidão de questões e temas, alguns dos quais a cinza do tempo não apagou. O poeta renova-se no fluir do tempo, dando-nos conta da sua experiência vivida, numa perspetiva de autenticidade que o leva a sentenciar: — “Não valem aparências, / Senão o coração inscrito / No que escreve / Fruto de experiências” (3).
. Numa tentativa de organização formal da sua produção poética, podemos considerar três fases de desenvolvimento. Com efeito, no volver dos anos, assiste-se a uma renovação temática e inovação na construção do verso. O filão lírico voltado para a Natureza é dominante na 1.ª fase, até à publicação da coletânea “Os 7 Poemas Líricos” (1929), publicada nas edições Presença. Neste volume, Afonso Duarte reedita as publicações anteriores, reorganizando-as, eliminando alguns poemas e introduzindo outras. Neste volume, o autor reedita títulos publicados antes, reorganizando-os, eliminando outros. O 1.º livro, cuja publicação conta com o apoio burocrático do amigo figueirense, João de Barros, vem a lume em 1912 sob o nome “Cancioneiro das Pedras” que reune poesias suas dispersas por revistas da época, entre 1906-1910. Seguem-se “Tragédia do Sol-Posto”,1914; “Rapsódia do Sol-Nado seguida do “Ritual do Amor” (1916); “Romanceiro das Águas” (incluído inicialmente no Cancioneiro...); e os poemetos: “Alegoria da Tarde” e “Episódio das Sombras”. O pendor lírico de "Os 7 Poemas..." mantem-se nas fases seguintes. Também em 1912 o poeta assume a direção literária de “A Rajada” e Correia Dias a direção artística—revista de crítica, artes e letras—, sendo grande parte dos colaboradores afetos ao movimento saudosista, com publicações em “A Águia”— revista ilustrada de literatura e crítica—, porta-voz da “Renascença Portuguesa”, movimento cívico e cultural, onde pontificava o ideólogo do saudosismo, Teixeira de Pascoaes.
. De 1912 para cá—refere Vitorino Nemésio—,”não houve movimento literário algum com raiz ou eco em Coimbra, que não tenha alguma coisa que ver com Afonso Duarte e os seus cafés” (5), Central ou Arcádia, onde à sua mesa montou uma espécie de cátedra que durante décadas acolheu antigos alunos, amigos e jovens estudantes universitários que ensaiavam os primeiros passos nas lides literárias e/ou pretendiam uma orientação na conduta cívica e saber pedagógico. Na conjuntura política pós-revolução republicana de 5 de Outubro de 1910, Pascoaes e outros assumem o projeto de regeneração do país em torno da estética literária de um saudosismo nacionalista propenso ao culto da tradição, do misticismo panteísta e do génio da raça. Para o Festival do Poeta, Coimbra 1951, Afonso Duarte escreveu esta “Saudação a Pascoaes / ...À direita dos Deuses terás palma / Nos aléns do Arquipélago celeste: / Pois às velhinhas coisas tu descestes, / No que tocastes foi alma” (6). E “In Memoriam” de Teixeira de Pascoaes : “...Cantando o seu drama lírico / Lá no Marão entre fráguas, / Ele era ao vento do Espirito / Como a pomba sobre as águas” (7).
. Neste âmbito, o meio familiar de Afonso Duarte também contou. Do tio-padrinho, José Maria Fernandes, professor do ensino primário, dizia que "lhe ensinou a ler e rezava os Lusíadas”. Assim a sensibilidade estética, as ideias e valores do sobrinho-afilhado foram-se afinando e interiorizando. No soneto “Génio da Raça” ( in "Romanceiro...") escreve: — “Minha raça é de herois, navegantes: /.../ Eu sou dum Povo adamastor de Lendas: / Sangue lusíada a cantar nas veias, / Fui Sagres afoitando os marinheiros”; e em “Diálogo com a minha Terra”: “...Lusíadas do povo ando a escrevê-los...” (ibidem ). É pois uma ideologia de feição neorromântica e metafísica, cuja doutrina integra as dimensões política, filosófica e religiosa, de cariz nacionalista.
. Para Fernando Pessoa, a relação de Pascoaes com a Natureza é como uma “espiritualização da matéria”. Com o movimento modernista enquadrado na "Revista Orfeu" (1915), o ciclo do saudosismo lusitanista, sob a égide do escritor de Marânus, perde influência. Por seu turno, Vitorino Nemésio precisa a cumplicidade entre Duarte e o poeta do Marão nos termos seguintes: “Enquanto Pascoaes é profeta do mistério humano refletido nos seres e nas coisas, e poeta das sínteses metafísicas, de grandes massas elegíacas rolantes e monótonas, Duarte é poeta da graça e do concreto, da vida dos campos, do sentido que tem o perfil bem delineado das coisas. Mas é isso com uma expressão de raiz tradicional, tirada exclusivamente do nosso génio lírico, do seu abecedário desde Camões a João de Deus (...). A esse lirismo caseiro, mas do puro e do alto, deu Afonso Duarte uma volta sua, tanto na inspiração como na forma...” (8). Porém, este mundo rural de que Afonso Duarte é memória e porta-voz , hoje não existe. De qualquer forma, todo esse inolvidável passado ainda se mantém na memória reminiscente da atual geração dos mais idosos, constituindo um património cultural que faz a identidade da "terra de meus que Deus mantenha", a "Ilha de Ereira", a "Guernesey dorida", na sugestiva expressão do Poeta.
. A breve trecho, depois de cantar a terra e o sol, o poeta vai iniciar uma aventura poética transformadora e purificadora que inaugura o período da maturidade (2.ª fase) com as obras “Ossadas”(1947) e “Post-Scriptum de um Combatente”(1949), publicações estas redigidas nos anos 30 e 40, na vigência da Presença —Folha de arte e crítica — publicada em Coimbra, 1927, dirigida e editada por João Gaspar Simões, José Régio e Branquinho da Fonseca, na qual Afonso Duarte publicou os artigos "Para uma Nova Posição Estética. Subsídios de Arte Popular Portuguesa” (1928) e “Os Contos do Natal e o Sentimento Religioso Popular”(1936). [Sobre a mesma temática publica “Um Esquema do Cancioneiro Popular Português”, Seara Nova, 1948]. Porém, surge o "Novo Cancioneiro" (1941-1944)— coletânea de poesias de um grupo afeto à estética neorrealista (Carlos Oliveira, Joaquim Namorado, João José Cochofel, Fernando Namora, Mário Dionísio, Manuel da Fonseca, entre outros). Nesta altura já Afonso Duarte era uma figura tutelar no contexto cultural conimbricense, mau grado ter sido afastado da docência oficial, em 1932. Nesta 2.ª fase, a publicação em 1947 do livro "Ossadas", que significa redução do verso ao essencial, marca o início de nova orientação estética da poesia. Como, entre outras, as seguintes: "Poeta / Prende-te uma flor / Porque te não inquieta? / — Poisada borboleta, / Só perfume e cor. // Mas um dia a dor, / Outro dia o amor, / Voa a borboleta! // — Poeta: // É a flor” (9); ou em — “Carme—Uma só rosa vale o roseiral. / Porque me escreves longo o teu poema? / O inspirado instante sem igual / Acaso não será a hora suprema?” (10). A preceder a fase de redondilhas, inclui na "Obra Poética" (ed.1956) "O Anjo da Morte e Outros Poemas", por determinação expressa do Autor, e "Lápides e outros poemas (1956 - 1957)", obra de publicação póstuma.
. Por outro lado, partindo do pressuposto da existência de uma analogia entre o sincretismo do desenho livre e espontâneo da criança e os esquematismos dos motivos decorativos da arte popular, Afonso Duarte empreendeu uma interessante e fecunda aventura poética e psicopedagógica que se materializou em “Desenhos animistas de uma criança de 7 anos” (1933) e, por conseguinte, com influxo na desestruturação do verso —, um legado que Afonso Duarte deixou à poesia do seu tempo. Para tal, contribuiu o considerável volume de espécimes de etnografia artística, em parte recolhidos do folclore português pelos seus alunos, o que permitiu uma sábia utilização pedagógica na Escola Normal Primária de Coimbra, no sentido de uma intuição de Arte. [Na “Carta Metodológica” (1925) que acompanhou a mostra de desenhos decorativos inspirados na cerâmica popular regional na exposição de Locarno, 1927 , escreveu: “Apesar de muitos serem os meios por nós ensaiados no ensino do desenho decorativo, nenhum outro despertou tanto interesse nos educandos como o estudo dos desenhos folclóricos”. Em 1925 deu à estampa “O Desenho na Escola — Barros de Coimbra”. Tipografia “Lumen”, Coimbra].
. Em síntese, a poesia de Afonso Duarte transmuda-se na fala da origem, na voz do princípio, na busca da inocência... Assim, o que carateriza esta nova estética poética é o verso curto, conciso: “Poemas breves / como instante da flor / que abriu para morrer” (11).
. Na 3.ª fase da “Obra Poética”(trilogia das redondilhas), o poeta inspira-se em autores clássicos Virgílio, Ovídio..., na "aurea mediocritas" horaciana, na conceção estoica da vida, na nostalgia decorrente da perda da inocência e da felicidade: — “Inocência de menino, / Quem a dera em minha mão: / Oh! como há de ser feliz / A rosa ainda em botão!” (12). E no mesmo tom: “Só a criança conhece a Eternidade / Que é inocência do desconhecido. / E o que me dá saudade / É havê-la em mim perdido”... (13)— temas estes já enunciados em "Ossadas".
. Fiel a uma atitude romântica, assume-se vate que arrisca dizer o que virá. É agora a aventura do homem em direção ao cosmos; daí o vaticínio de um novo tempo:—”Ai vida da minha vida, / Cada um astro é sinal / Para nova partida /...” (14).
. Em contraponto, um sentimento de desilusão: “Ode Spútnika / Vulneráveis satélites / Percorrem o espaço / Onde quis haver deuses! // E choro (Neptuno e Vénus, Mercúrio e Marte). Choro: / — O meu mundo infantil / Acabou hoje. /...” (15). Ou o sentido ético da vida:— “Europa de Jesus Cristo / Em cruz de pau e de pedra, / Mantém-te segura nisto: / Com o alheio ninguém medra /...” (16)... É o tempo histórico, complexo, de desorientação geral em que se encontra a Humanidade, face às contradições, esperanças e desesperos, provocados pela catástrofe humana que foi a 2.ª Guerra mundial (1939-45).
.“Canto de Babilónia”(1952 ) é de certo modo a continuação do livro anterior, sendo comum a ambos a forma oracular, metafórica e expressiva:—”Ao que sei dos Tempos de hoje / (Ai! Valha-me o espaço etéreo!) / Um dia a Terra nos foge / Oca de sangue e minério! / Eia! sus! Em linha reta, / Depressa! E, outro planeta, / Ao que sei dos Tempos de hoje”. Na crítica social lembra Sá de Miranda e na critica à perda dos valores morais, Camões em “Sôbolos rios que vão”.
. “Canto de Morte e Amor” (1952 ). Neste livro o poeta confronta-se com o eterno problema da vida e da morte. Deste modo se exprime: “Problema da morte? Não: / Apenas só na medida / Em que dá mais coração / A quem se encontra na vida”. Porque para o poeta “O que levamos da terra / É o céu que possuímos: / Esperança das sepulturas”, dado que “morre a carne”, mas acredita noutra existência na qual “vive o espírito” que é “luz da carne”. Tudo isto intui o poeta a propósito da morte de pessoas que lhe eram próximas. Foi em torno desta experiência concreta, vivida, que o espírito de Afonso Duarte se abre para o mistério da morte e do amor. Daí esta bela mensagem: —”A graça feminina / Ainda mantém o mundo. / E secamente o digo, Poetas, / Se não cantais o amor.// Se não cantais em louvor / Da graça de uma ternura, / Que é a vida? Ai, amor, / A vida é uma amargura (17).
. Nos últimos anos de vida atormentava-o a falta de saúde. Coube a Carlos de Oliveira e João José Cochofel organizar a 1.ª edição da “Obra Poética” (1956) de Afonso Duarte. Ambos se confessam “dois dos discípulos mais modestos” e enaltecem-no com as seguintes palavras: “Mestre querido e raro: de versos, de saúde intelectual, de confiança no homem, de amor à terra, de rosas e cantigas—com grandeza bastante para não ter menosprezado nunca a juventude dos discípulos. Mestre Afonso Duarte”. E, em meados da década de cinquenta, este ilustre filho da Ereira e do concelho de Montemor-o-Velho foi declarado pelos seus pares o Maior Poeta Português vivo.
Obras de referência de/sobre Afonso Duarte: | - Obra Poética (Iniciativas Editoriais, Lisboa 1956); ||-Obra Poética (Guimarães Editores, Lisboa 1957); II|-Lápides e outros poemas (1956-1957) Iniciativas Editoriais, Lisboa 1960; |V- Obras Completas I - Obra Poética (Plátano, Lisboa 1974); V- Poesias de Afonso Duarte (Editorial Comunicação, Lisboa 1984) Maria Madalena Gonçalves; VI- Obra Poética I - Os 7 Poemas Líricos (Introdução José Pires Azevedo / Montemor-o-Velho: Casa Museu infante Dom Pedro, 2002 - 2003); VII -Obra Poética (Introdução... de José Carlos Seabra Pereira / Edição Crítica comemorativa do cinquentenário da morte do autor / Imprensa Nacional - Casa da moeda, Lisboa 2008) / Biblioteca de Autores Portugueses
_____________________________
NOTAS
1 “Tragédia do Sol-Posto”
2 Revista Panorama, n.º 5, 3.ª série
3 Sentença, in “Post-Scriptum de Um Combatente”
4 Epígrafe, ibidem
5 Revista de Portugal, vol. II, 1939
6 “Post-Scriptum...”
7 O Anjo da Morte e Outros Poemas, Musa Familiar, 1952
8 Revista de Portugal...
9 ”Ossadas”
10 “Post-Scriptum...”
11Introdução a “Ossadas”
12 Inocência, in “Ossadas”
13...Extremis, in “O Anjo da Morte e Outros Poemas”
14 “Sibila”, 1950
15 Lápides e outros poemas, 1956-1957
16 “Sibila”,1950
17 ”Canto de Morte e Amor"
Sem comentários:
Enviar um comentário