sábado, 10 de março de 2012

TU, PALAVRA DE POESIA !...

                   "TU, PALAVRA DE POESIA!..."(1)

      Nascido e criado na Pérola do Baixo Mondego, Afonso Duarte era um homem de porte atlético, alto e magro como um choupo das margens do seu celebrado rio, distinto sem ostentação, um olhar penetrante de águia denunciador de uma intensa força anímica. Apesar de aos trinta e cinco anos ter contraído uma paraplegia que limitou parcialmente o movimento dos membros inferiores até ao fim da vida, nem por isso os traços essenciais da sua personalidade foram minimamente afetadas. Pelo contrário. Nos anos vinte e trinta manteve uma intensa e diversificada vida intelectual ao serviço da educação, da investigação pedagógica, do folclore, das artes populares e da poesia. Tudo isto à mistura, por algum tempo e sucessivamente, com funções administrativas no ensino secundário oficial (Liceus Infanta D. Maria e José Falcão, em Coimbra).
Sociável e evasivo, possuidor de uma cultura embebida de sabedoria e camponês/agricultor quando calhava, inteligente sem vaidade, modesto mas de firmes convicções, de palavra estimulante, ora irónica, ora sibilina ou mordaz, detestava a bajulação mas era sensível às pequenas atenções e delicadezas.
Em suma: Afonso Duarte tinha um caráter de português à maneira de Francisco Sá de Miranda (1481- 1558), também ele poeta e lavrador, que em auto-retrato afirmou ser "homem de um só parecer, dum só rosto..., de antes quebrar que torcer". Por seu turno, o poeta da margem do Mondego ergue bem alta a voz quando afirma nesta quadro de "Ossadas"(1947): "Podem encher-me os punhos de grilhetas, / Ou pregar numa cruz a vida minha. / Não é canto propício de poetas / O velho medo que guarda a vinha".Ou ainda, de outra maneira, para se aquilatar da estatura moral do ilustre ereirense, e segundo as suas palavras: "Mais vale merecê-los sem os ter, que tê-los sem os merecer". Isto afirmou quando as novas orientações da castradora "política do espírito" iniciadas já no governo da Ditadura Nacional (1926-1933) entraram em ação e cortaram cerce os seus entusiásticos e belos projetos educativo-profissionais.
O cantor dos campos do Baixo Mondego deu a si próprio este sugestivo retrato: "É na poesia lírica dos rios, / No sarcasmo das rugas das montanhas, / No que me enche de mar, de sonho e de desvario, / Que meu retrato vivo se desenha".(2) Agarrado ao terrunho do monte da Ereira, o poeta camponês confessa-se: " A terra cultivei amargo e rude, / No sonho de melhor a ter servido"(3)..., num processo de identificação com o seu povo - "Cavador que vais cavando / Hoje canto do teu mando", - com "rudes versos feitos de saibro e lágrimas choradas", no olhar de homens e mulheres prisioneiros de um destino injusto - "Ah! o heroísmo de cavar a terra / Sem o pão nosso de cada dia para a boca!".(4)
Poeta telúrico, irmão do Sol, das montanhas, das árvores e amante da Vida, teve o gosto e a alegria de escrever poesia com as palavras mais próximas da vida palpitante e colorida: "Choveu. E que bonito os batatais, / Os feijoais, os ´milharais´! // Videiras, tenho-as já que dão provas. / E as árvores novas? / Cada rebento, um abraço" // Depois, vem sol: Um solzinho lindo / Como um efebo loiro"... Bonito! / Bonita primavera! Chuva e sol".(5)
Mas a nota que coloca Afonso Duarte à altura dos poetas maiores da poesia lírica de todos os tempos é a profunda solidariedade com o seu povo e as realidades concretas: "Ó dor e amor! Ó Sol da manhãzinha! / Canções da gente rude, se as escuto, / Eu mesmo cavo e sou quem poda a vinha!".(6)
Solidariedade que se transmuda em raiva, na Tragédia do Sol-Posto _ um canto à Ereira, à luta e à revolta do homem com a terra... que é também a luta e a revolta do Poeta.
Como poeta e como homem manteve ao longo da sua existência a frescura e a juventude de espírito, conforme nos confidencia: "Ainda crente, ao descair da idade, / Quando o coração já mal se escuta? / É o quanto vos deve, mocidade, / O meu agreste espírito de luta. // ... Trazeis-me fé, renovo, a novidade / Que a Terra há de criar, _ mãe incorrupta!..."(7)
Apesar das contrariedades e das injustiças de que foi alvo e contra as quais manteve uma resistência inquebrável de mais de vinte anos, Afonso Duarte, homem de têmpera rija, jamais desistiu de cantar a Vida:  A atestá-lo está, por exemplo, esse modelar e emblemático soneto que é um canto de lirismo naturalista de amor à Vida _ Rosas e Cantigas 
"Eu hei de despedir-me desta lida, / Rosas? _ Árvores! hei de abrir-vos covas / E deixar-vos ainda quando novas? / Eu posso lá morrer, terra florida! // A palavra de adeus é a mais sentida / Deste meu coração cheio de trovas... / Só bens me dê o céu! eu tenho provas / Que não há bem que pague o desta vida. // E os cravos,  manjerico, e limonete, / Oh! que perfume dão às raparigas! / Que lindos são nos seios do corpete! // Como és, nuvem dos céus, água do mar, / Flores que eu trato, rosas e cantigas, / Cá, do outro mundo, me fareis voltar"
À beira do coval do poeta, Miguel Torga, num gesto de nobreza de sentimentos, proferiu uma bonita evocação de que extraímos as palavras seguintes: "Sim, restam-nos a recordação do que foste e o respeito pelos versos que escreveste. E dela e dele tiraremos o lenitivo possível. Mas tínhamo-nos acostumado à eternidade da tua presença. ´Eu posso lá morrer terra florida!´, in "Ritual do Amor". Desde este grito de luz, ninguém mais acreditou nesta hora de negrura." 
Não é por acaso que as flores, nomeadamente as rosas, ocupam um lugar especial na poesia de Afonso Duarte.(Cita-as cerca de quarenta vezes na "Obra Poética"). Nos canteiros florais adjacentes à casa do Poeta, bem como no jardim do lado norte da casa dos pais havia roseiras em profusão. Estas últimas sobreviveram até às obras que transformaram o imóvel em Centro de Dia da Associação Cultural Desportiva e Social da Ereira, ATL da Associação Fernão Mendes Pinto, Sala/Biblioteca Afonso Duarte e sede da Junta de Freguesia), cujas rosas se chamavam "rosas de Portugal" e localmente conhecidas por "rosas do Poeta". Afonso Duarte evoca-as para expressar estados de alma: sentimentos, afetos, qualidades, sonhos...
Ora sensibilizava-o a cor: "Porque morri / Se Maio me dá rosas? / (E sabe algum pintor / A pureza da cor / Que têm as rosas?)."(8)
Ora o caráter efémero: "E haver rosas na mesa, a flor do instante".(9)
Seja o perfume: "Oh! estética feliz do sol a sol, / Na terra que removo com o meu braço, / Ver as plantas crescer, ou me console / Um respirar de rosas pelo Espaço!..."(10)
Seja em tom profético: ..."Cada um astro é sinal / Para uma nova partida! / A Terra? _ Ponto final, / Que seja berço de rosas?"...(11)
Quer um sentimento de desilusão: ..."Enchi de rosas a terra / E levo nas mãos espinhos". (12)
Quer nessa bela e humaníssima sentença: "Carrega-te de afeto nas palavras, / No gesto e luz dos olhos: / Colherás oiro do chão que lavras, / Rosas e não abrolhos". (13)
Enfim!...as pequenas coisas que dão gosto e beleza à Vida: “... Mas sem aves, sem rosas de toucar, / A vida era tão pobre, era tão nua!". (14)
E, quando se aproxima o fim dos seus dias, e os homens de boa vontade enamorados da beleza da sua Arte, se juntaram na Ereira, naquele memorável Dia de S. João (24 de Junho de 1956) para uma última homenagem ao Homem cuja Obra é reveladora de uma "nobre e dramática mas generosa Vida de Poeta" (Mário de Castro), não foram uma vez mais esquecidas as rosas. Afonso Duarte escreveu para o evento os versos adequados à nobreza dos seus sentimentos naquela hora de exaltação humana e poética:
"Alegre de vós todos, homens livres, /.../ Neste mundo de amor que é a poesia. / / Por sobre terramotos e vulcões de lama / Que abrem boca na Terra, / As rosas de quem ama". (15) 
Enamorado das flores, o Poeta fez das rosas um dos ex-líbris que acompanham algumas das suas publicações.
 Ereira, Setembro de 2004
___________
1 Redondilhas, in "Canto de Babilónia"
2 Três Estâncias, in "Ossadas"
3 Soneto, in "Sibila"
Estepa, in “Ossadas”
5 Bucólica, in Idem
Versos da Madrugada, in "Rapsódia do Sol-Nado"
7 Soneto, in "Post- Scriptum de um Combatente"
8 Porque morri, in "O Anjo da Morte e Outros Poemas"
9 Morada, in "Post-Scriptum de um Combatente"
10 Sol, in "O Anjo da Morte e Outros Poemas"
11Redondilhas, in "Sibila"
12Recordação, in "Post-Scriptum de um Combatente"
13Lápides, in "O Anjo da Morte e Outros Poemas"
14A Morte da Rola, in "Ritual do Amor"
15Homenagem, in "Lápides e Outros Poemas"

2 comentários:

  1. e ainda bem que há quem se preocupe em relembrar e manter viva a memória do Poeta e do Homem!

    ResponderEliminar
  2. Gosto, obrigado. Por uma questão de elementar justiça: "manter viva a memória do Poeta e do Homem".

    ResponderEliminar