domingo, 2 de junho de 2013

A Criança - 2

      O mês de junho começa sob o signo da criança. No dia 1 celebra-se o Dia Mundial da Criança. Ela é o futuro, o futuro de todos nós! Porém, nestes tempos de correrias, preenchidos com milhentas ocupações e solicitações de toda a ordem, a que obriga o estilo de vida acelerado e/ou competitivo do nosso tempo, facilmente se entra em stress, com as conhecidas consequências para o desequilíbrio emocional, individual e familiar. Se os pais e os educadores dificilmente escapam imunes a esta situação, então as crianças - sempre a parte mais fraca! - são certamente as primeiras vítimas.

     Não é verdade que, neste contexto, nós adultos nos vamos desabituando de ver "a criança na criança", porque a nossa mente, orientada noutras direções, não encontra suficiente disponibilidade para ela? E a educação exige do adulto atitudes de compreensão, de amor e respeito; do espírito de aceitação e de reconhecimento da importância da infância como etapa necessária no desenvolvimento do adulto; da atitude de tolerância pelos “erros” e hesitações da criança, com a consciência clara da nossa parte que ela tem maneiras próprias de ver, pensar e sentir.

     Já em 1829, Almeida Garrett (1799-1854) no tratado "Da Educação" advertia que "o educador esteja sempre alerta, e não deixe escapar uma ocasião de ensinar alguma coisa ou de retificar outra; mas não force ele essa ocasião, e quando a faça nascer porque muito convenha, seja com tanta naturalidade que pareça puro acaso"1.

      Quanto ao método de aprendizagem, Garrett é perentório: "O luminoso método da análise, isto é, aquele no qual o educando é o artífice de suas próprias ideias e princípios, em que, dirigido mas não levado, guiado mas não forçado, no caminho da virtude ou da ciência, ele mesmo ache por si as verdades que lhe convém saber; e seu próprio saber, obra sua, terá tais raízes e tal força que nada o abalará no espírito ou desarraigará do coração"2.
      Como se vê, o autor de "Viagens na Minha Terra" adota a metodologia socrática da descoberta das ideias e princípios, isto é, o saber verdadeiro ou ciência identifica-se com a virtude - perspetiva também defendida no séc. XVIII por J.- J. Rousseau (1712-1778) e H. Pestallozzi (1746-1827), arautos da crítica do intelectualismo excessivo da pedagogia tradicional protagonizada por ambos, e de quem Garrett também recebeu inspiração. Mas importa ainda dizer que o escritor liberal, introdutor do Romantismo em Portugal, de acordo com o ideário da referida corrente literária, preconiza a afirmação plena do individual, do diferente, nos homens como nas nações.
       
       Estas referências a Garrett conduzem-nos diretamente a Afonso Duarte, nascido na freguesia da Ereira, MMV, que, em alguns aspetos, é considerado um neogarrettiano. Assim, na controvérsia em torno do desenho de imitação e do uso do papel quadriculado na escola primária tradicional, por um lado, e do desenho espontâneo e livre da nova didática, por outro, Duarte, um séc. mais tarde, retoma a linha crítica de Garrett. Com efeito, o brilhante professor de modelação e desenho da Escola Normal Primária de Coimbra afirma que "não há nada que mais obstrua a compreensão da arte das crianças do que esse convencional formalismo que faz limitar os meios de expressão a uma imitação tão fiel quanto possível da natureza. A habilidade é a técnica do lugar comum e de modo algum pode servir a bem compreender a produção gráfica ou plástica das crianças (...). Criou-se no vulgo um ideal de perfeição mecânica que se traduz na técnica artística pelo conceito de habilidade e se figura por uma atividade meramente imitativa”3.

       E conclui o autor de "Os desenhos animistas de uma criança de 7 anos"4.
"Vivem, portanto, fora do mundo infantil aqueles que têm a criação artística como pura atividade de imitação, - fiéis que ficaram à velha escola que tinha o desenho como uma prenda, encarcerando a criança nos moldes do adulto, iniciando-a pela cópia de estampas, e para cúmulo de tudo, aprisionando-a na quadrícula"5.

        Estavam, pois, lançadas as bases, também por via do desenho espontâneo e livre, para colocar a criança no centro do sistema educativo e da ação pedagógica.
_________________________
1 Carta Terceira, in "Da Educação"
2 Carta Primeira, in "Da Educação"
3 Presença - Folha de Arte e Crítica. Coimbra, Nov. 1933
4 Imprensa da Universidade. Coimbra, 1933
5 Presença, ibidem

domingo, 19 de maio de 2013

A Gata “UMA”

É de linhagem siamesa. De porte elegante. Aceita-se que esta estirpe seja originária do sudoeste asiático que teria vindo para Inglaterra na segunda metade do séc. XIX e daí para diferentes países do mundo. Quando nasceu tinha um destino marcado. Ser animal semi-vadio condenado à luta pela sobrevivência. Nasceu em 2003 de uma ninhada de vários filhotes. Porém, esse destino em breve seria outro. É que ocorreu uma circunstância inusitada. A nossa neta, Maria, de sete anos de idade na altura, manifestou à avó a vontade de ter um porquinho no quintal da Ereira, com toda  a liberdade de entrar e de sair no/do espaço habitado. O visado porquinho nasceu de uma ninhada de dezasseis filhotes, sendo o número de tetas da mãe porca quinze. Como a natureza nem sempre é perfeita, havia um recém-nascido excedentário. Este fenómeno impressionou vivamente a criança. 

Agora imagine-se um porquinho em casa a confusão que era!... Esta ideia extravagante colidia com o feitio da avó, e deve ter sido inspirada numa qualquer obra de literatura infanto-juvenil. Todavia, entre neta e avó existia uma cumplicidade afetiva forte, o que poderia facilitar a desistência da ideia excêntrica da Maria. Numa última tentativa de levar avante o seu propósito, a menina ainda sugeriu um galinheiro devoluto no quintal da avó para acomodar o porquinho, o qual ficaria à guarda da Maria Couta, uma idosa de mais de oitenta anos que ainda nos serve. Mas, como a casa da prima Irene distava uns cem metros da habitação da avó, aquela teve uma ideia luminosa, na expetativa de uma solução a contento das partes. 
Palavra puxa palavra! E a páginas tantas, a Luisinha, filha da prima Irene e vive ao lado, sugeriu a alternativa de trocar o porquinho por uma gatinha também recém-nascida. A Maria aceitou de boamente a ideia sem pensar mais no assunto do porquinho. Passados que foram alguns dias, a jovem neta queria levá-la para casa dos pais, em Montemor. Entretanto o pai, que não simpatizou com ideia da coabitação com felinos, perguntou como se chama? É um gato ou uma gata? Responde a filha prontamente: É uma gata! De rompante o pai diz: Então vai chamar-se “UMA”. É esta a explicação do nome dado à bichaninha. 
Entretanto acabou por prevalecer a ideia de levar a gata para a casa da avó, na Ereira. Aí as condições de segurança do animal não eram as melhores. Pelo contrário... Num certo dia, a bichana resolveu evadir-se sem deixar rasto. A família saiu a terreiro  com medidas tendentes a capturar o bicho, não fosse ocorrer algum mau encontro. Mas qual quê?! Ninguém da vizinhança deu conta da UMA. A Maria, que já se afeiçoara à sua gatinha, chorava baba e ranho. São assim os afetos das crianças para os animais! Nisso dão lições aos adultos que, apesar dos animais serem participantes da nossa humanidade, ainda os tratamos pouco, como tal. 
Porém, após três dias de desassossego, eis que a gata apareceu à beira-rio, a uns trezentos metros de casa da avó. O Zé Moço, um vizinho da borda do Monte, foi quem nos disse que por ali a vira, junto à ponte da Ereira a miar muito.  A Olívia, que mora mesmo juntinho ao rio, corroborou que por ali apareceu uma gata de raça siamesa. Percebeu que o animal andava perdido e esfaimado. Deu-lhe comida abundante até ficar saciado. 
A UMA, dada a sua condição de animal predador, continuou a explorar o terreno até que foi descoberta e levada para casa da avó. Foi uma busca com um final feliz! Entretanto a Guida, mãe da Maria, também gosta de gatos. Num belo dia, mas mais tarde, pessoa amiga deu-lhe uma gatinha a que foi dado o nome de “MU”. Esta, por sua vez, teve uma ninhada e uma das gatinhas, a "BEE", ficou em casa. Porém, a época estival chegou ao fim... Era o tempo de passar o inverno no andar da Figueira. Foi consensual a UMA continuar na companhia da avó Melita. Isto significava para a gatinha transitar de um espaço livre para outro de clausura, com pouco mais de cem metros quadrados. É óbvio que a felina ia estranhar agora um espaço limitado para os seus habituais movimentos, mau grado o nível de segurança ser elevado, julgávamos nós.  Todavia o inimaginável estava para acontecer! Num dia aziago, a gatinha encontrava-se sozinha em casa. Possivelmente stressada e deprimida! 
Como se trata de animal predador, nas primeiras horas matinais deliciava-se a observar, empoleirado no peitoril da janela da cozinha, o voo festivo de pombas e de pássaros que lhe punham instintivamente as garras de atalaia e os dentes à mostra. Mas certo dia, aconteceu o azar da janela ficar entreaberta, o suficiente para a gatinha saltar do peitoril da janela para o estendal do tardoz do 4.º piso do prédio. Face ao inédito de uma situação desconfortável, talvez a UMA tenha tentado reverter ao ponto de partida. Contudo não era fácil dada a instabilidade das cordas do estendal. O resultado foi um tombo em queda livre, talvez um pouco amortecido nos estendais de baixo, até ao chão. Com efeito, no caso de queda, os felinos instintivamente fazem rodar o corpo de modo a cair de patas que são almofadadas, intervindo também a cauda no equilíbrio e na flexibilidade do animal. Pouco depois do acidente, eu regressava a casa, eram horas de almoço, vi a gatinha ajoujada no chão com aquele olhar tristonho de quem admitia a culpa e pedia perdão. Admito que sim! Porque a nossa gatinha já provou à saciedade que tem sentimentos, emoções e inteligência prática para resolver algumas situações concretas. Como animal de nossa estimação, imediatamente dirigimo-nos ao veterinário para o despiste de  qualquer mazela ou fratura. Passou a noite na clínica. O diagnóstico foi positivo. Nada que inspirasse cuidado.
Quando os nossos filhos eram pequenos, criámos passarinhos! Entrementes passaram-se os anos e desde há dez que temos esta gatinha que nos tem feito boa companhia. Tem sido gratificante conhecer as suas características e comportamentos habituais: audição direcional, o que lhe permite orientar as orelhas, independentemente, para os locais de som; higiene na limpeza dos pelos e no enterrar das fezes e urina; quando desestabilizada emocionalmente, corre desarvorada no corredor da casa, farta-se de miar, dando-nos a sensação da necessidade de atenção, de carinho. E na verdade assim é! A UMA comunica connosco, fala mediante vários tipos de miado e ronrona quando em estado de prazer ou de satisfação. 

Ao jeito de conclusão. Para os defensores de uma conceção biocêntrica do ambiente, o homem é apenas um elemento a mais no ecossistema da natureza. Não representa mais do que um elo na cadeia de reprodução da vida. Esta é uma visão ecológica que sustenta a educação ambiental, um dos grandes desafios do nosso tempo, in Fritjof Capra. Segundo o princípio da alteridade, o conjunto dos elementos do nosso meio têm o estatuto de um eu. Neste sentido, cada parte do todo torna-se Tu que passa a outro EU. Este sujeito-tu suscita a presença do sujeito-Eu. A realidade humana é, pois, a dum ser em relação. Segundo o filósofo Hans Jonas, a educação ambiental privilegia o princípio de responsabilidade para com o presente e o futuro. Por outro lado, o filósofo e teólogo Leonardo Boff defende um novo “paradigma de convivialidade que preconiza o zelo do ser humano para com a totalidade dos seres que constituem a natureza." 
E mais, “há descuido e desinteresse  pela dimensão espiritual do ser humano, pelo ´espírito de gentileza´ que cultiva a lógica do coração e do enternecimento por tudo o que existe e vive". Também o filósofo  Martin Heidegger emprega o conceito Terra para significar “não o sentido do solo a que o nosso corpo é atraído, mas o todo que participa de um mesmo ciclo: o ar, as águas, os animais, o próprio solo, etc. A natureza num sentido primordial não é aquela que se revela ao engenheiro, que procura nesta matéria prima para o desenvolvimento tecnológico, nem a que se revela para um homem de negócios, que vê o mesmo cenário em forma de investimento, mas sim a que se revela ao habitante. Para Heidegger, a natureza vai além da ideia de instrumentalização e revela significados que não se limitam à objetividade ou à linguagem objetiva: (...) É a natureza ricamente significante que se apresenta apenas ao habitante e, apenas por este motivo, também pode ser a natureza encontrada e cantada pelo poeta.” 

segunda-feira, 8 de abril de 2013

José Pires Lopes de Azevedo (1923-2007) In Memoriam

           JOSÉ PIRES LOPES DE AZEVEDO (1923-2007) in MEMORIAM

      Sabíamos que nos últimos tempos não andava bem, situação que não era alheia o presente estado de saúde da sua querida esposa e nossa estimada colega, a dra. Adelaide Ribeiro. Ainda há duas semanas minha mulher e eu próprio fomos visitá-los, ela na sua casa da Rua Miguel Bombarda e ele no Hospital Distrital da Figueira, onde havia sido internado na véspera. Minha mulher disse-lhe que a esposa nos recebera com um sorriso muito lindo. Ato contínuo respondeu com um misto de ternura e alegria: “É o sorriso dela”. 
     Falou-nos de tal modo que dava gosto ouvi-lo sobre alguns dos seus planos para o futuro, mormente um tema tanto do seu interesse como do meu – o poeta Afonso Duarte. Porém, nada fazia prever um desfecho fatal tão rápido quanto inesperado...
    Conhecemos o casal há longos anos, desde os finais da década de sessenta, altura em que ambos eram responsáveis pelo Colégio Santa Catarina. Após o nosso estágio pedagógico bianual em Coimbra, fomos colocados no Liceu (velho) da Figueira. Decorria o ano letivo de 1967/68 e, a dada altura, demo-nos conta de uma ação cultural no Colégio referido, genericamente em torno do tema “Música”. Gostámos, inclusive a intervenção final do prof. Azevedo no seu jeito peculiar de interessar um auditório. 
     No ano imediato regressámos ao Liceu D. João III (hoje José Falcão), onde o casal Adelaide Ribeiro - José Azevedo, pouco tempo depois, também fez o estágio pedagógico na área das ciências histórico-filosóficas, necessário à profissionalização no ensino liceal. Durante uns escassos anos (três ou quatro) perdemo-nos de vista. A partir de Outubro de 75 fixámo-nos na Figueira para uma permanência de duas décadas na Escola Secundária (antigo Liceu), até à nossa aposentação.
Entretanto, o dr. Pires de Azevedo, terminada a comissão de serviço como diretor da Escola Preparatória de Montemor-o-Velho, regressa à Figueira, à Escola  que hoje se chama Escola Secundária Doutor Joaquim de Carvalho, nome que foi aceite face a uma bem fundamentada proposta do nosso colega. É neste estabelecimento de ensino que vai desenvolver e aprofundar uma importante e notável ação didática e pedagógica, quer a nível da lecionação curricular quer no âmbito multicultural da atividade circum-escolar.
    Neste particular, as suas mostras/exposições sobre temas culturais (v. g., o Renascimento, Açores, Timor, e muitos outros), e acerca de figuras ilustres (Joaquim de Carvalho, Afonso Duarte, David de Sousa, etc.), tornaram-se frequentes ao longo do tempo, tendo algumas delas sido apresentadas, para além da Escola, em terras vizinhas: Montemor, Coimbra, ou Ereira... 
Era um género de ocupação ao qual se dedicou de alma e coração, muito do seu gosto, e em cuja execução se revelou exímio. Registamos ainda alguns dos seus sumários no “livro de ponto”: sem sair do programa curricular, ensinou-nos que era possível aproveitar um evento ou tema cultural para tornar uma aula mais viva ou interessante. 
   Como colega tinha uma natural ascendência sobre os restantes professores do grupo e não só. Tal resultava não só da sua vasta cultura, mas também, e sobretudo, de um espírito aberto, de um trato afável, de uma discreta simplicidade e sábia maneira de estar na vida. A sua boa relação com os alunos era invejável, isto é, modelar. Um dia, perguntado sobre o seu peculiar modo de lidar com os alunos, respondeu com um sorriso nos lábios: “Sabe, foi fruto da experiência acumulada no ensino particular”. Possuía o dom daquela graça e fina ironia que orna alguns espíritos e distingue um ser humano pela positiva.
    Num dos nossos últimos “encontros”, não programados, no “Tubarão”, onde aterrávamos de quando em vez para dois dedos de conversa, saiu-se com esta: “Então..., hoje vamos dizer mal de quem?! Porém, face ao inusitado da situação, esclareceu que “o dito não era seu mas de um grupo de ´bem falantes´ da nossa praça que costumava iniciar as suas reuniões com o referido mote”. Ao longo de tantos anos de convivência, cerca de década e meia, nunca o vimos irritado ou fora de si com algo ou alguém. 
    Não nos vamos alongar noutras áreas ou atividades onde o seu espírito naturalmente se afirmou com reconhecido mérito. O gosto pelo jornalismo, mormente de feição cultural, desde os recuados tempos do “Mar Alto” até aos vários periódicos da cidade, sem discriminação, José Azevedo marcou presença assídua e brilhante. Participou ativamente em causas cívicas por convicção, em obediência aos ditames da sua consciência. Publicou livros, alguns de colaboração com a sua extremosa Esposa, sempre aquela grande Mulher que o apoiou ao longo da vida. No âmbito do Movimento Rotário local, de que era membro, temos conhecimento que foi um elemento assaz dinâmico, onde também deixou bem vincada a marca da sua passagem. A Autarquia Figueirense, num louvável gesto de justo reconhecimento pela sua postura cívica e pelo interesse e valor do conjunto da sua Obra, distinguiu-o oportunamente com a Medalha da Cidade. 
    Julgamos que duas gradas e ilustres figuras da Cultura Portuguesa terão marcado, de alguma forma, o espírito do dr. José  Pires de Azevedo: por um lado, o figueirense, Professor da Faculdade de Letras da U. Coimbra, Doutor Joaquim de Carvalho, filósofo e grande divulgador da Cultura Portuguesa, de quem o casal fora aluno; e por outro, o ereirense dr. Afonso Duarte, prof. da Escola Normal Primária Coimbra, poeta, pedagogo e etnógrafo. 
   No nosso último encontro/visita ao Hospital, falou-nos com entusiasmo de alguns planos que tinha em mente para os tempos imediatos. Um deles era a publicação do segundo volume da Obra Poética, do notável ereirense de quem tanto gostava e admirava. Chegámos mesmo a esboçar um plano de colaboração, dada a dificuldade de locomoção que o incomodava.
   Afinal nada feito! Mas não é isso que importa nessa hora saudosa de “A Dádiva Suprema” do seu adeus a esta vida, de que tão bem falou o “venerado” amigo poeta de longa data. 
Quanto a nós, ao menos sirvam de lenitivo aquelas admiráveis palavras: “ Morte não é fim de vida, / Quem o pensa a traz perdida / Depois da morte também”...// Morre a carne, vive o espírito”... (Afonso Duarte, Canto de Morte e Amor).

sexta-feira, 1 de março de 2013

Papa resigna


Nota prévia: No 1.º texto, o Papa faz uma abordagem sobre a magna questão das relações Fé-Razão através da História da Igreja e da Cultura. No 2.º texto, reflete sobre os conceitos de justiça e caridade; e a problemática socio-económica, desde finais do séc. XIX, numa clara distinção no que concerne ao domínio do estado e à esfera da Igreja — “A Cesar o que é de Cesar e a Deus o que é de Deus”. No 3.º texto, o Santo Padre releva a urgência do diálogo das culturas e das religiões, segundo uma postura que conduza à Verdade, ao Bem e à Beleza. Por fim, Bento XVI analisa a “crise ecológica” atual, enfatizando, a esse respeito, a responsabilidade dos países industrializados, bem como das potências emergentes. Adverte para as nefastas consequências a nível planetário, se pouco ou nada for feito.
Nota final: A escolha dos textos não obedece a uma escala de valores em relação a outros documentos pontifícios. Todos são valiosos e importantes. A minha preferência por estes quatro é meramente pessoal, subjetiva. 
ALGUNS MOMENTOS DA VIDA PASTORAL DE BENTO XVI
1. “Fé, razão e universidade: recordações e reflexões”
O Santo Padre concorda que tudo o que é válido no desenvolvimento moderno do espírito, há-de ser reconhecido sem reservas. Porém, se é legítima toda a alegria em torno das possibilidades do homem, também há ameaças que resultam dessas mesmas possibilidades, o que nos deve levar a perguntar como poderemos dominá-las?  O sucesso será possível: 
1.º, se a razão e a fé se reencontrarem em diálogo de uma maneira nova; 
2.º, se for transposta a autolimitação imposta por uma razão que se confina apenas ao domínio do verificável experimentalmente;
3.º, se houver abertura da razão às interrogações das razões da fé.
Se tal acontecer, a razão voltará a ter o seu lugar no amplo diálogo das ciências e na universidade. E é urgente que tal aconteça para que: 
1.º, haja um verdadeiro diálogo das culturas e das religiões; 
2.º, a religião não seja subestimada, relegando-a para o plano das sub-culturas; 
3.º, sejam respeitadas as convicções religiosas mais íntimas, recolocando o Divino no âmbito da universalidade da razão. 
E conclui Bento XVI: a coragem da abertura ao vasto campo da razão, e não a rejeição da sua grandeza –, tal é o programa pelo qual uma teologia comprometida na reflexão sobre a fé bíblica entra no debate do tempo atual. (Discurso na Universidade de Ratisbona, 2006)
2. "Justiça e caridade" 
Desde o Oitocentos, vemos levantar-se contra a actividade caritativa da Igreja uma objeção, explanada depois com insistência sobretudo pelo pensamento marxista. Os pobres — diz-se — não teriam necessidade de obras de caridade, mas de justiça. As obras de caridade — as esmolas — seriam na realidade, para os ricos, uma forma de subtraírem-se à instauração da justiça e tranquilizarem a consciência, mantendo as suas posições e defraudando os pobres nos seus direitos. Em vez de contribuir com as diversas obras de caridade para a manutenção das condições existentes, seria necessário criar uma ordem justa, na qual todos receberiam a sua respectiva parte de bens da terra e, por conseguinte, já não teriam necessidade das obras de caridade. 
[Os pobres não teriam necessidade de obras de caridade, mas de justiça]. Algo de verdade existe — devemos reconhecê-lo — nesta argumentação, mas há também, e não pouco, de errado. É verdade que a norma fundamental do Estado deve ser a prossecução da justiça e que a finalidade de uma justa ordem social é garantir a cada um, no respeito do princípio da subsidiariedade, a própria parte nos bens comuns. Isto mesmo sempre o têm sublinhado a doutrina cristã sobre o Estado e a doutrina social da Igreja. 
Do ponto de vista histórico, a questão da justa ordem da coletividade entrou numa nova situação com a formação da sociedade industrial no Oitocentos. A aparição da indústria moderna dissolveu as antigas estruturas sociais e provocou, com a massa dos assalariados, uma mudança radical na composição da sociedade, no seio da qual a relação entre capital e trabalho se tornou a questão decisiva — questão que, sob esta forma, era desconhecida antes. As estruturas de produção e o capital tornaram-se o novo poder que, colocado nas mãos de poucos, comportava para as massas operárias uma privação de direitos, contra a qual era preciso revoltar-se. 
Forçoso é admitir que os representantes da Igreja só lentamente se foram dando conta de que se colocava em moldes novos o problema da justa estrutura da sociedade. Não faltaram pioneiros: um deles, por exemplo, foi o Bispo Ketteler de Mogúncia († 1877). Como resposta às necessidades concretas, surgiram também círculos, associações, uniões, federações e sobretudo novas congregações religiosas que, no Oitocentos, desceram em campo contra a pobreza, as doenças e as situações de carência no sector educativo. 
Em 1891, entrou em cena o magistério pontifício com a Encíclica Rerum novarum de Leão XIII. Seguiu-se-lhe a Encíclica de Pio XI Quadragesimo anno, em 1931. O Beato Papa João XXIII publicou, em 1961, a Encíclica Mater et Magistra, enquanto Paulo VI, na Encíclica Populorum progressio (1967) e na Carta Apostólica Octogesima adveniens (1971), analisou com afinco a problemática social, que entretanto se tinha agravado sobretudo na América Latina. O meu grande predecessor João Paulo II deixou-nos uma trilogia de Encíclicas sociais: Laborem exercens (1981), Sollicitudo rei socialis (1987) e, por último, Centesimus annus (1991). Deste modo, ao enfrentar situações e problemas sempre novos, foi-se desenvolvendo uma doutrina social católica, que em 2004 foi apresentada de modo orgânico no Compêndio da doutrina social da Igreja, redigido pelo Pontifício Conselho «Justiça e Paz». 
O marxismo tinha indicado, na revolução mundial e na sua preparação, a panaceia para a problemática social: através da revolução e consequente coletivização dos meios de produção — asseverava-se em tal doutrina — devia dum momento para o outro caminhar tudo de modo diverso e melhor. Este sonho desvaneceu-se. Na difícil situação em que hoje nos encontramos por causa também da globalização da economia, a doutrina social da Igreja tornou-se uma indicação fundamental, que propõe válidas orientações muito para além das fronteiras eclesiais: tais orientações — face ao progresso em ato — devem ser analisadas em diálogo com todos aqueles que se preocupam seriamente do homem e do seu mundo. 
Para definir com maior cuidado a relação entre o necessário empenho em prol da justiça e o serviço da caridade, é preciso anotar duas situações de facto que são fundamentais: 
A justa ordem da sociedade e do Estado é dever central da política. Um Estado, que não se regesse segundo a justiça, reduzir-se-ia a uma grande banda de ladrões, como disse Agostinho uma vez: «Remota itaque iustitia quid sunt regna nisi magna latrocinia?». Pertence à estrutura fundamental do cristianismo a distinção entre o que é de César e o que é de Deus (cf. Mt 22, 21), isto é, a distinção entre Estado e Igreja ou, como diz o Concílio Vaticano II, a autonomia das realidades temporais. O Estado não pode impor a religião, mas deve garantir a liberdade da mesma e a paz entre os aderentes das diversas religiões; por sua vez, a Igreja como expressão social da fé cristã tem a sua independência e vive, assente na fé, a sua forma comunitária, que o Estado deve respeitar. (Carta Encíclica Deus é Amor)

3. "Cultura e Fé no Centro Cultural de Belém com Bento XVI"
Bento XVI aproveitou a oportunidade da visita a Portugal para nos lembrar a “tradição cultural do povo português muito marcada pela milenária influência do Cristianismo, com um sentido de responsabilidade global, afirmada na aventura dos Descobrimentos, através da partilha do dom da fé com outros povos”. Perante a alteração do quadro de valores socioculturais dos novos tempos, a Igreja é chamada a uma postura dialogante, com culturas diferentes e religiões diversas, que comunique uma mensagem dirigida ao coração das pessoas, a cada pessoa de boa vontade, contribuindo deste modo  para a pacífica convivência dos povos.
O Papa recorda que a Igreja tem uma missão a cumprir ao serviço da Verdade “em prol de uma sociedade à medida do ser humano, da sua dignidade, da sua vocação”. Para tal, é necessário manter o diálogo com o mundo que conduza à Verdade, ao Bem e à Beleza -, numa atitude integradora do que há de válido noutras culturas e religiões. A Igreja interpela, mas também deixa-se interpelar. Só assim haverá um enriquecimento mútuo. “Esta é uma missão prioritária da Igreja, na qual se inclui o aprofundamento do conhecimento de Deus, tal como ele se revelou em Jesus Cristo para nossa total realização”, disse o Sumo Pontífice. 
O Santo Padre terminou o seu discurso com uma mensagem emoldurada de Optimismo e Esperança: “Fazei coisas belas, mas sobretudo tornai as vossas vidas lugares de beleza”. E termino esta mensagem plena de sabedoria com as palavras do poeta: “Tu, palavra de poesia, / Só tu, humana e perfeita! / [...] / Pois só tu, por natureza, / Dás espírito à Beleza, / Tu, palavra de poesia! (Afonso Duarte, in “Canto de Babilónia”)

4. "O Papa e a crise ecológica"
Bento XVI dedicou a sua mensagem para o Dia Mundial da Paz 2010 (1 de Janeiro) à defesa do ambiente, falando numa "crise ecológica" e apelando à comunidade internacional para que tome medidas que travem as alterações climáticas.
O documento, apresentado esta Terça-feira no Vaticano, tem como tema "Se quiseres cultivar a paz, preserva a criação".
“Compete à comunidade internacional e aos governos nacionais dar os sinais certos para enfrentar de modo eficaz as formas de exploração do ambiente que são prejudiciais para o mesmo”, diz Bento XVI, para quem é urgente “promover a pesquisa e a aplicação de energias de menor impato ambiental”.
O documento surge na reta final da Cimeira de Copenhaga, que procura um acordo global para travar os efeitos das mudanças climáticas. Para o Papa, é necessário reconhecer que “entre as causas da atual crise ecológica” está a “responsabilidade histórica dos países industrializados”.
A mensagem acrescenta, contudo, que também os países menos desenvolvidos e emergentes devem assumir as suas “próprias responsabilidades”, porque o “dever de adotar gradualmente medidas e políticas ambientais eficazes pertence a todos”.
Nesse sentido, defende o Papa, são precisos “cálculos menos interesseiros na assistência, na transferência dos conhecimentos e tecnologias menos poluidoras”.
Para proteger o ambiente, tutelar recursos e o clima, sugere Bento XVI, é fundamental respeitar “normas bem definidas, também do ponto de vista jurídico e económico”, tendo em conta “a solidariedade devida aos que habitam nas regiões mais pobres da terra e às gerações futuras”.
O Papa alerta para “os perigos que derivam do desleixo, se não mesmo do abuso, em relação à terra e aos bens naturais que Deus nos concedeu” e elenca um conjunto de problemáticas que derivam de fenómenos como as alterações climáticas: “A desertificação, a deterioração e a perda de produtividade de vastas áreas agrícolas, a poluição dos rios e dos lençóis de água, a perda da biodiversidade, o aumento de calamidades naturais, a desflorestação das áreas equatoriais e tropicais”.

terça-feira, 13 de novembro de 2012

À volta do "Dia Mundial da Filosofia", 2011

                                  1 - Filosofar é preciso
Italo Calvino [1923-1985], figura de relevo da literatura italiana, apresenta em “As Cidades Invisíveis” [1972) um quadro fantasioso no qual profetiza o futuro da condição humana. Na descrição intervêm duas personagens: O Grande Kahn, imperador dos tártaros, e o explorador veneziano Marco Paulo. À semelhança de Platão na “Alegoria da Caverna”, para Calvino a contemporaneidade é um tempo de sombras, cinzento, carregado de incertezas e sofrimentos. O diálogo entre os dois decorre da forma seguinte: 
“ O Grande Kahn já estava folheando em seu atlas os mapas das ameaçadoras cidades que surgem nos pesadelos e nas maldições (...).
Disse : — É tudo inútil, se o último porto só pode ser a cidade infernal, que está lá no fundo e que nos suga num vórtice cada vez mais estreito.
E Polo: — O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige  atenção e aprendizagem contínuas : tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno. E preservá-lo e abrir caminho”. 
Aqui está uma questão crítica de desajuste a uma realidade massificada, de pensamento unidimensional, que constitui campo fértil à reflexão filosófica. “Abrir caminho” é filosofar— tarefa necessária... Neste âmbito, José Saramago escreve que “o único antídoto para reverter o mau funcionamento da democracia  é construir uma sociedade crítica que não se limite a aceitar as coisas pelo que elas parecem ser e depois não são, mas se faça perguntas e diga ´não´ sempre que for necessário dizer não. Para isso, é urgente voltar à filosofia e à reflexão”. 
Por seu turno, Jean-Paul Sartre [1905-1980] escreveu um dia que o “inferno são os outros” -, isto em nome da sacrossanta liberdade, dado que, segundo o filósofo existencialista, “ o homem é um projecto de si próprio”, em concordância com o axioma de que a sua “existência precede a essência”. Nesta perspetiva, o homem é livre, “condenado a fazer escolhas livres, mas situadas”. Quer dizer, “ser livre não é fazer aquilo que queremos, mas querer aquilo que podemos”. 
Assim sendo, possui a liberdade de autodeterminar-se, sendo o homem o criador único de todos os valores. O problema é a multiplicidade e diversidade de projetos individuais que originam inevitavelmente situações conflituosas. Neste ponto, Sartre invoca a ideia de responsabilidade, pela qual o homem se torna responsável por si e pela humanidade. “A nossa responsabilidade é muito maior do que poderíamos supor, porque ela envolve toda a humanidade”, na qual se circunscreve, exclusivamente, a vida humana, conclui. Neste contexto sobressai o “sentimento de angústia”. E, nas mais diversas manifestações do conviver  humano: o sadismo, o ódio, o masoquismo, a indiferença... É nesta ótica que Sartre sente a necessidade de mostrar a dimensão ética do Existencialismo, para o que escreve o ensaio “O Existencialismo é um Humanismo”(1946).
Partindo de pressupostos diferentes, I.Kant [1724-1804], filósofo idealista, à interrogação “que devo fazer? enuncia o seguinte imperativo: “Age de tal modo que a máxima da tua vontade possa valer sempre ao mesmo tempo como princípio de uma lei universal”. Com efeito, nestes dois filósofos, as escolhas nos domínios morais e/ou éticos, além de individuais têm uma abrangência que atinge todos os homens, embora divirjam noutros domínios.
Servem estas considerações de introdução  aos temas selecionados para a celebração do passado “Dia Mundial da Filosofia”. O evento teve lugar no Casino Figueira, fruto de uma louvável parceria com a Escola Secundária c/3 CEB Dr Joaquim de Carvalho. No âmbito da proposta da Unesco para a celebração da efeméride na terceira semana de Novembro, foi escolhido o dia 17, pelas 21h. e 30m. Na qualidade de anfitrião, o Dr. Domingos Silva, dinâmico administrador do Casino que o transformou, ao longo do tempo, também em Casa de Cultura da Beira Litoral, apresentou os conferencistas e saudou os presentes que ocupavam literalmente o espaço do salão café. A larga maioria eram estudantes do ensino secundário. Impunha-se dar continuidade a um projeto/debate iniciado aquando das comemorações do 50.º aniversário da morte do ilustre figueirense Professor de Filosofia na FLUC, Doutor Joaquim de Carvalho. 
A preceder os debates, um neto de Joaquim de Carvalho traçou em linhas gerais o projeto em curso, que conta com o apoio do Casino, e visa a disponibilização na Net da Obra escrita e documentos fotobiográfícos e epistolares respeitantes a seu Avô. Tal deve acontecer por volta mês de janeiro próximo.
                            2 - Do objeto e fins do filosofar
  O filosofar não tem um domínio específico de objetos, como acontece nas ciências.  
Pelo contrário, consiste num enfoque do espírito que coloca qualquer objeto sob a perspetiva da reflexão problematizante. Assim, não interessa de que assunto podemos partir para a filosofia. Por exemplo, o Ser e o Nada  não fazem parte do objeto de qualquer ciência, mas, pelo contrário, constituem temática de altas e de prenhes consequências no âmbito da reflexão filosófica. 
O desafio que desencadeou as celebrações da efeméride ficou a dever-se ao jornalista, analista político e professor do Ensino Superior, Carlos Magno, que tem assumido o papel de moderador nas edições anteriores. A propósito de ética, citou o filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein [1889-1951] que, de acordo com o seu ideário filosófico contido no Tratactus Logico-Philosophicus, quando alguém disser algo de “metafísico”, conotado com a ética, por exemplo, deve explicar o significado preciso e claro do que diz, reformulando as suas proposições, no sentido de tornar claros os seus pensamentos, inclusive impondo-lhe limites - ideia de inspiração (neo)positivista. O moderador referiu um artigo publicado, ainda não há meia dúzia de anos, na revista americana “Time”, na qual se faz a apologia da aceitação de formados em Filosofia nos quadros das empresas, o que mostra bem a sua pertinência nas problemáticas que envolvem o vasto e complexo mundo do trabalho, hoje.
Marcado para o dia 17 de Nov., pelas 21h. e 30m, o painel de conferencistas foi constituído por três docentes  universitários: Anselmo Borges, teólogo, filósofo e professor na FLUC; José Manuel Moreira, economista, filósofo e  professor na Univ. de Aveiro; José Maria Gomez - Heras, filósofo e professor nas Univ. de Salamanca, Córdova e Complutense de Madrid. Os temas versados — “Ética, Economia, Ambiente e Política” —assuntos de incontestável atualidade. 
Anselmo Borges conotou a ética com a liberdade. Sem esta, não é possível perseguir a senda da dignidade humana. Como nas sociedades há corrutos, homicidas, mentirosos..., impõe-se a sanção do Estado através da aplicação coerciva das leis pelos tribunais. Daí que, “quanto menos éticos forem os cidadãos mais necessária é a política”, asseverou. 
José Manuel Moreira, mais voltado para a área económica, campo a que se tem dedicado preferencialmente, considera que hoje “está na moda a palavra ética”. Todos reclamam a ética nas mais variadas situações humanas. À questão, para que serve a ética? disse que “serve para melhorar as coisas ... A ética, mais do que condenar a pessoa, promove-a, conduzindo a metas que de outra forma seriam inacessíveis”. Trata-se de uma “disciplina prática, normativa, que, fundando-se na razão, dirige-se prioritariamente à vontade da pessoa livre e consciente dos cidadãos”. 
José Maria Garcia Gomez-Heras avança a ideia que a nossa sociedade é plural, ideológica e culturalmente. Daí que os conflitos entre valores e tradições culturais façam parte da vida quotidiana. Para dirimi-los, impõe-se diferenciar a esfera pública, regida pelo princípio da justiça através da aplicação do direito, e a esfera privada, que, mediante o poder do Estado, garante o princípio da liberdade. As temáticas privilegiadas do seu trabalho filosófico andam à volta da ética ambiental e a bioética. O autor frisa que “a forma mais eficaz para enfrentar o fanatismo terrorista é a defesa daqueles valores que configuram a civilização ocidental e que esta conquistou a sangue e fogo... A linguagem que permite falar de Deus é aquela que parte da liberdade gerada no mundo da vida, fonte de vivência íntima, valor e concórdia”. 

terça-feira, 28 de agosto de 2012

ECOS DO DRAMA DE UMA JOVEM POR TERRAS ANGOLANAS


         O tempo que já passou pesa muito mais do que o que está para vir (Marcel Proust)

  Trata-se de uma narrativa de memórias ainda não publicada em livro—ECOS DE MINHA MEMÓRIA (EXCERTOS)—, gentilmente cedidos pela escritora Maria Luisete Cardoso Baptista. É uma peça literária escrita na primeira pessoa. Um relato de inquestionável autenticidade, fruto de uma experiência vivida em condições dramáticas num espaço e num tempo de sombras e pesadelos do território angolano. É pois uma descrição deveras impressiva, dir-se-ia escrita com o próprio sangue da escritora. 
Quando tudo aconteceu, tinha  Maria Luisete treze anos em Março de 1961. Era ainda a fase do desabrochar para a vida adulta. Como qualquer jovem da sua idade, acalentava sonhos e projetos no seu íntimo. Na terra natal (Santa Leocádia, Tabuaço, Viseu) os recursos para uma vida minimamente equilibrada e satisfatória eram escassos. Com efeito, na década de sessenta a miragem da emigração generalizada estava na ordem do dia. Conhecemos bem esse fenómeno da diáspora portuguesa que nos tocou também de perto entre familiares e amigos. 
    A família de Luisete, perseguindo uma estrela de melhor sorte, decidiu fixar-se em Angola. Mas a jovem apenas precisava de paz, segurança e um ambiente acolhedor, propício à valorização das suas potencialidades. Porém, os ventos da História repentinamente mudaram. Parecia coisa impossível!... O que aconteceu?!
A narradora situa o início da ação na fazenda dos pais a pouca distância da povoação Bembe, no norte angolano. E informa: “ Eu e os meus irmãos (...) pouco ou nada compreendíamos do que estava a acontecer e a razão de tal procedimento por parte dos angolanos negros. (...) Nessa fatídica noite (...), sons de batuque (...) chegavam até nós, como que anunciando, pressagiando algo de terrível”. Todo o espaço da região norte foi atingido pela tragédia: “Sangue, loucura, revolta, armas, atrocidades praticadas contra tudo e todos invadiram as nossas vidas e quebraram a harmonia, o feitiço de uma felicidade aparente”. 
Nestas circunstâncias, era forçoso assentar arraiais numa terra que desse mais segurança. A opção foi o Songo. Instalada aqui a família, a escritora confessa que “descrever os dias subsequentes, a sua amargura e tristeza, é como que pregar um espinho no coração de todos os que viveram esta tragédia”. E, em jeito de ponderação conclusiva, adverte que o veredito da História “terá de fazer justiça à bravura dos homens e crianças, de todas as raças, que caíram ao longo de quinze anos de luta” (...). Mas, como nada acontece por acaso, em toda esta via sacra de dramas e tragédias, que foi o fenómeno angolano de uma descolonização apressada, não podia deixar de aparecer, como que por sortilégio, um Cireneu. Foi o Senhor Caldeira, esse Bom Anjo, que, numa disponibilidade total e tão generosa, acolheu no seu prédio todas as senhoras e crianças foragidas de uma tragédia quase certa. 
   Perante os relatos trágicos dos acontecimentos, a palavra de ordem era todas as mulheres e crianças fugirem para a cidade do Uige. Era uma dor de alma, um Calvário de choros e lamentos! “Eu, meus irmãos e pais chorávamos também”... 
Mas, passadas duas semanas em permanente insegurança, “regressámos ao Songo “através de picadas e matagal”. Aqui também a situação era complicada. Porém, a breve trecho, Maria Luisete com os irmãos, mas agora sem os pais, teve de partir para o Negage, onde tomaram o avião para Luanda com mais duas crianças que lhes foram confiadas. Na capital angolana, longe dos pais sentiram-se perdidas, pois não conheciam ninguém.          Estavam entregues à sua sorte. Dominava-as o pavor do medo, da insegurança. Porém, outra vez bafejou-os a  sorte! Uma família - qual Bom Samaritano! - acolheu-nos, diz Maria Luisete.
Por fim aconteceu a tão ansiada  partida para Portugal, no dia vinte e sete de junho de 1961. Quando o navio zarpa do porto de Luanda, esta jovem vivencia a ambivalência de sentimentos de beleza e tristeza. Na natureza tudo estava pacífico e calmo, mas, por outro lado, à medida que a cidade se afasta dos olhos, mais funda fica  no coração. Era a hora do começo de um sentimento antecipado de  saudade que jamais se apagará. Pelo contrário, reforçar-se-á ao longo dos anos num processo positivo de reconciliação com o passado. Na verdade, Goethe tinha razão quando enunciou a máxima: Faz da tua dor um poema
Maria Luisete revive atualmente na escrita, na pintura e na fotografia ((facebook) lampejos desses tempos idos. Porque partilhar as memórias é salutar. Os seus leitores experimentarão decerto sentimentos e/ou emoções de  proximidade por admiração ou empatia para com a autora. E por isso lhe ficamos todos - os seus leitores - agradecidos.

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

A MULEMBA

      Este é o título do primeiro de cinco já publicados pela escritora Maria Luisete Souto Cardoso Baptista. Agradou-me deveras esta estória infanto-juvenil de uma menina de seis anos cuja narradora é a mãe que a conduz, antes de adormecer, à envolvência de um mundo fantasmagórico onde se deixa seduzir por formigas-brancas, galos, galinhas, ratazanas, passarada, pombas, ponte, rio, árvores... no contexto da imensidão africana que serve de palco ao desenrolar da estória. Com efeito,  todas essas vivências infantis integram-se num mundo mágico de brincadeiras e fantasia onde habita o carinho, a ternura e o amor. Naquele ambiente a criança sonha, o que é maravilhoso, porque “sonhar é viveres coisas fantásticas”- diz-lhe a mãe. 
      Na verdade, é esse mundo de pequenos nadas que os olhos da criança descobrem, como se fosse o limite, o céu, ou o paraíso perdido dos adultos, tantas vezes insensíveis e cegos para o invisível, no qual reside o essencial, que se oculta por baixo do que os nossos sentidos apreendem. O título da obrinha, A Mulemba, escrita numa prosa de inspiração poética, reporta-se a uma ´entidade´ ficcional que na narrativa possui o virtuosismo de se metamorfosear consoante o mundo interior dos sentimentos, emoções, paixões e experiências que perpassam no íntimo da criança, ao longo da sua caminhada existencial. O presente de parabéns do pai, quando a sua menina faz sete anos, é uma árvore frondosa com laço vermelho no tronco porque “era dia de festa, dia dos seus anos e de A Mulemba, nome que significa “árvore de copa muito densa”. Doravante “tornaram-se amigas inseparáveis”. Porém a família deixou a casa grande e mudou-se para um pequeno apartamento. Assim, por falta de espaço, desta vez a opção dos pais, para o presente do dia de anos da sua menina, recai sobre “um cato da loja da esquina”. 
    Entretanto, o mundo idílico e mágico, em que a criança se move, vai agora, confrontar-se com as obrigações escolares impostas pelos ´colonizadores´ adultos que a querem ´moldar´, ao ensinar-lhe coisas que não sente e muito menos entende, por se distanciarem do quotidiano das cores e cheiros que inebriam os seus sentidos e lhe enchem a alma. Este é o mundo dos afetos que lhe transmitem os pais e “a irmã e mãe terra que nos sustenta e nos governa, e dá tantos frutos e coloridas flores”, segundo a mística do poveretto de Assis no admirável Cântico das Criaturas. Afinal, essa outra humanidade, no dizer do Poeta. 
  Todavia o choque de mudança da menina para a escola leva a evadir-se da sala de aula e sonhar com “A Mulemba de copa volumosa, como se fosse um telhado de plumas. Debaixo dela, constrói e destrói cidades inteiras, inventa diálogos com a árvore e esta ouvia tudo... tinha perdido a noção do tempo”. Com efeito, a escola era uma construção racional dos adultos em contraponto à espontaneidade das suas vivências infantis. Porque “Sou apenas uma criança"!, exclama. Na escola, um dia sonhou com um local cheio de árvores. Acordou ao pé de uma mangueira, “fartou-se de mangas, mas, agora sim, estava feliz junto de uma nova amiga”. 
    Porém a menina cresce, estuda e aprende naquele novo mundo dos adultos em que “tudo era uma obrigação”, levando-a “a deixar de brincar, de rir, de sonhar”. Mas paulatinamente descobre que, sem esquecer A Mulemba, nova amiga surge, porque a vida assim proporcionou, e então “os dias passaram a ser mais alegres e azuis”. 
   Depois de Angola e do Brasil, até 1975, vem a vez da Figueira, onde finalmente se instala. Aqui tem “um cato para cuidar, para amar”, . 
   O livrinho contém uma mensagem ecológica forte em torno de um dos temas recorrentes, maiores do nosso tempo, com um objetivo didático-pedagógico: “As árvores e os animais também ficam tristes...”; o cato, apesar de pequenino, “precisa de ti, do teu carinho, das tuas atenções”; e generalizando, “grandes ou pequenos todos gostam de amor...” 
  Dada a sua formação académica, com licenciatura em Línguas e Literaturas Modernas (Português, Francês), e longa experiência docente no ensino secundário, hoje aposentada da Escola Doutor Joaquim de Carvalho (Figueira da Foz), Maria Luisete Souto Cardoso Baptista estende a sua apurada sensibilidade estética ao âmbito da arte pictórica, numa bem conseguida urdidura entre a palavra escrita e a pintura. Este interessante entrosamento constitui uma mais-valia das obras desta escritora, com créditos firmados, pois proporciona sinestesias que seduzem o leitor até o fim da narrativa. Formalmente A Mulemba é um livrinho de texto e ilustrações cuidadosamente trabalhados ao longo das doze partes ou painéis de múltiplas valências. A combinação pictórica dos castanhos, verdes, azuis, vermelhos, cinzentos, amarelos ..., apresenta tonalidades de uma suavidade que dir-se-ia etérea. Por outro lado, o papel que serve de suporte ao texto e ilustrações é de boa qualidade. 
    Aquela menina sonhadora, contestatária da escola, que viveu em Angola e Brasil, "personagem" principal da narrativa, por fim fixou-se na Figueira da Foz - a  nova representação de A Mulemba. É, obviamente, uma bonita estória com ingredientes e contornos autobiográficos. (Pé de Página Editores, Março 2005).